domingo, 28 de março de 2021

UVAS


Uvas é uma palavra cheia e colorida

de embriagada fantasia:

sonhos, imaginação e porfia;

metade pura ilusão, outra metade vida.

    


 

sexta-feira, 26 de março de 2021

FANTASIA


Assim te relembro no que há em mim de mais profundo:

busto de mar e espuma; saia apertada, de areia fina…

e sempre que assim te lembro desvaneces e, imagina,

já te não vejo e o que afinal recordo em ti é todo o mundo.

 

Todo o mundo, todo o mundo que me corrói e mina.

Íntimo, imaginado, que numa fracção de segundo,

me cega e convoca mais premente e mais fundo,

muito aquém donde começa; muito além donde termina.

 


 

segunda-feira, 22 de março de 2021

JORNAIS


Que é feito da notícia?

Ainda há pouco tão falada:

um militar, um polícia,

uma notícia fardada.

 

Depois civil, rebuscada,

em entrelinhas, obscura,

ainda assim noticiada

e livre de qualquer censura.

 

Parangonas de matutinos,

o máximo que as páginas consentem,

tocam a rebate os sinos

notícias que os vespertinos desmentem.

 

Em caixa alta, a nota da redacção,

esclarece com esmero e perícia,

que má notícia, em primeira mão,

é sempre uma boa notícia.


 

sexta-feira, 19 de março de 2021

OS BENS RESTANTES


Sem norte e a terra definhada

aos pés, a olhos vistos;

os deuses meteram-se em tal alhada,

que em vez de deuses são Cristos.

 

Pediram orações, oferendas, andores

e galgaram como perdizes acossadas

a contar os óbolos em troca de favores.

Corvos - eram corvos - em cima das ossadas.

 

Exibiram então mezinhas, elixir medonho,

limões podres e demais fruta ácida e repugnante,

nada de doces, sequer de adoçante

 

e por fim, quando o perigo for já distante

exibirão fortuna abençoada, coroa e turbante…

E se tal ainda não se enxerga terá sido um sonho.


 

terça-feira, 16 de março de 2021

CANTAR DE AMIGO


O que me mentem as tuas mãos, quando acenas?

Sei lá se te despedes com ganas ou me dizes adeus,

com ares de exuberância imitada ou apenas

fátua negaça,  se me insinuas vem ou vai com deus.

 

Tenho dúvidas, tenho por traquejo muita dificuldade

em saber  se realmente me honras e me tens em alta

ou se apenas é comum em ti dar azo à vulgaridade

de adeusar quem fica e adejar a quem já não te faz falta.

 

Cobro o mesmo: sou amigo de quem sempre fui;

não precisas de fingir, nem te exijo esse empenho

e não tenho pretensões ao que do nada nasce ou flui,

mas apenas do que de amizade  por ti ainda tenho.


 

sábado, 13 de março de 2021

CAIS DE EMBARQUE


Ancorada a caravela, que mais posso

se não amarrar com ela, junto ao cais

e pedir, de proa ao vento, um osso,

uma sopa aguada e pouco mais?

 

Já tudo está à vista; a limpo e descoberto:

dúvidas e sombras dantes cultivadas,

hoje são pobres ilhas ou desertos

sem gente, almas e outros predicados,

 

que não seja luto, fealdade e desamor;

consentimento de fé, gente profana,

dependendo apenas do letal valor,

seja planta, bicho, mineral ou raça humana.

 

Pela verdade, voltando ao ponto de partida,

desenhado no cais, parede da memória,

que posso ser, quem me dá o silvo de partida,

onde acabo eu e começa a história?


 

quarta-feira, 10 de março de 2021

PANDEMIA


Ter-te de corpo inteiro só de olhar era o segredo…

Até isso me negaste, ó humanidade contrafeita!

Passas, ombro a ombro e olhas como quem espreita

e eu tremo, não sei que diga, mas tenho medo.

 

Dizes-me, de longe, que o asséptico conceito

previne a contaminação e que o álcool, o detergente

e a distância são provas de amor, do novo afecto.

Por hoje sê rebelde e dá-me um beijo; é urgente.  


 

segunda-feira, 8 de março de 2021

DIAS DE GUERRA


Noite de vela

o menino chora

papão vai-te embora

da sua janela

 

o menino chora

em desatino

pela noite fora

não dorme o menino

 

o dia demora

demora o destino

e o menino chora

que é pequenino

 

papão vai-te embora

deixa o menino

sonhar noite fora

que é palestino


 

sexta-feira, 5 de março de 2021

ERA HERA



Era de outro tempo

hera de agora

aqui não há magia, há lamento

e tarda para mandar embora.

 

Bati à porta,

ninguém retorquiu quem era

presumiram vento, folha morta,

incúria de quem não espera.

 

Era o que tinha de ser,

hera tudo o que tem,

o resto é bom de ver:

era em nada e hera também.

 

quarta-feira, 3 de março de 2021

BILHETE DE IDENTIDADE



O tempo passa e vou com o vento…

de manhã esfrego as mãos como quem reza:

é um modo de permanecer atento

e ajuda a ter, pelo menos, meia certeza.

 

Quando a tarde cai e o dia escurece

é hora de avaliar o bom e o seu contrário.

São contradições de quem permanece

e vai retirando folhas ao calendário.

 

Haveria de ter sido um pássaro, ocre,

de olhos bem abertos, como se encantado;

aquele que por ser desenho não sofre,

em vez de sofrer de tanto ter voado.

 

Querem encontrar-me, saber quem sou?

O silêncio basta, mapa não é preciso:

um pássaro que sem querer voou,

algures entre uma lágrima e um sorriso.

 

segunda-feira, 1 de março de 2021

ONDINA


Ondina veio de novo esta noite dar-me um beijo

enquanto dormia, enquanto sonhava,

enquanto me afogava nas águas de um pesadelo.

Ela conhece a minha respiração ofegante

e a estupidez da minha claustrofobia.

Diz-me que os seus beijos são terapia bastante

e as ondas sensuais do seu corpo são o embalo de que preciso.

Ela ama-me enquanto eu me amarro

de unhas e dentes ao bote que me leva mar adentro.