A MÃE
O meu avô materno era como um pêndulo, não por ser relojoeiro, mas por se assumir como o umbigo da família. No dia 22 de Junho de 1953, debruçou-me, decidido, sobre a primeira urna que enxerguei, insinuando aos meus trezentos e quarenta e sete dias de natural sobrevivência, não a mim, ser aquela, incontestavelmente morta, a minha única e exequível mãe.
A TI CARLOTA
Contam que a Ti Carlota, fervorosamente católica, subia, solta, há muitos anos, as escadas da muralha (também sua casa), quando tudo ficou repentinamente escuro, e Satanás a esbofeteou violentamente ao ouvir o seu “credo, Jesus Senhor”. Morreu quase centenária e cega com esta recordação latente, quase verdadeira.
A ESCOLA PRIMÁRIA
Aos seis anos levei a primeira palmada sobrenatural às cinco da manhã. Já então tinha passado com o ferro quente pelas ceroulas de dormir ensopadas de mijo até aos joelhos. Creio que ultrapassaram um rosário as ave-marias avulsas que rezei. Depois foi a manhã mais bem-vinda enquanto durou a instrução primária.
MAGIA QUASE
Lembro-me daquelas cabras maltesas pelo abandono, que só por morte a tiro lhes reivindicavam a posse; dos corvos tão aparentemente estúpidos como negros, habitantes perpétuos das ilhas de Cabo Verde dos tempos coloniais. A seca permanente deixava o chão cor de barro e fendido. Por sorte, os bocados de madeira e os restos dos sacos de cimento da construção civil sobravam. Era isso o pasto e o repasto daqueles conformados animais.
domingo, 30 de outubro de 2011
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
TRÂNSFUGAS
Não fujas
tu és todos os lugares
não te escondas
entre cortinados
que tu mesmo teceste
não finjas
desconhecer Setembro ou Novembro
que aceitaste
com argumentos contrafeitos
e que mais tarde sacudiste do capote
que não era nada contigo
dispara à queima roupa
verás o meu sangue ganhar terreno
ah a tua pressa
pode lá haver quem a denuncie!
Inédito, 1985
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
VOAGEIRO
É certo que voamos
consideravelmente
pela estética dos passos
e a teimosia da gravidade.
É certo que voamos
deselegantemente
pela genética falta
de um par de asas.
É certo que voamos
intermitentemente
pela congénita vontade
de ser como as aves.
É certo que voamos
deslumbradamente
pela fonética magia
das asas dum poema.
É certo que voamos
eternamente
pela patética comiseração
de imitar os homens.
É certo que voamos
hipocritamente
pela técnica apurada
mas muito baixo.
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
SENHORES DO NADA
Não é nojo e muito menos desprezo
o que sinto por esta relativa maioria.
Por esta e outras, correlativas no peso,
sinto a raiva que há muito não sentia.
O cinismo tomou-lhes conta da oração:
pregam de cátedra e com desdém,
órfãos de si mesmos, híbridos de geração
que não é gente, que não é ninguém.
Não adianta esmagá-los, as suas veias
não têm sangue. Morrem por combustão:
ardamos pois nos actos e nas ideias,
que eles esfumam-se como tiços de carvão!
quinta-feira, 20 de outubro de 2011
PÁTRIA OU LIXO
A pátria é um saco descartável
onde quem quer dela faz lixeira
e o certo é que o cheiro é desagradável,
pútrido, incómodo, intragável.
Então pode definir-se desta maneira:
A pátria é uma renovada estrumeira.
É mais que tempo de limpar
e tornar esta uma pátria asseada!
Conferindo os meios a usar,
(é de excluir a votação, dá azar…)
Aux armes, citoyens! Mão pesada,
o lixo já só sai à vassourada!
terça-feira, 18 de outubro de 2011
MAL TALHADO
Faltava um bocadinho assim para lá chegar,
mostrava entre o indicador e o polegar;
coisa muito pouca, daqui até lá é um ápice.
Logo a seguir vinha a novíssima burrice…
Tomou ofício de ministro com altas notas,
dos que prometem tudo e um par de botas
mas, ao contrário, dele nada se atinge ou herda
e em tudo onde põe a mão faz merda.
Mas não se pense que é obra do destino;
que tudo lhe foi azar, moléstia ou desatino…
Não, essa é a sua capa, o seu disfarce,
que estas malfeitorias têm conteúdo de classe.
Assim deixo a questão para pensar de novo:
faz-se a folha ao mal talhado ou troca-se de povo?
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segunda-feira, 17 de outubro de 2011
DANTES
Antes de correr, andava;
antes de andar, dormia;
antes de dormir, corria;
antes de correr, andava;
antes de andar, sonhava;
mas isso era dantes…
antes de andar, dormia;
antes de dormir, corria;
antes de correr, andava;
antes de andar, sonhava;
mas isso era dantes…
sábado, 15 de outubro de 2011
NOTAS SOLTAS
Perverso é procurar
o mar num verso;
o inverso
é se o verso naufragar.
Mas se de tanto porfiar
der à costa, controverso,
está no verso
e está no mar;
é face e verso.
quinta-feira, 13 de outubro de 2011
DIÁLOGOS CANINOS
CÃO POLÍCIA :
-Travesti – de gatas
tem tal perícia
em quatro patas
o cão polícia
.
CÃO LADRÃO:
Béu – béu disse o cachorro,
se não digo morro.
- Ão, ão refilou, adulto, o cão,
somente eu ladro ão.
CÃO CÃO :
Vida de cão
é um caixote de lixo;
não é luxo, não,
coitado do bicho.
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
DIÁLOGOS CANINOS
Bem te entendo, amigo cão,
o discurso é claro e nada omisso;
não és como quem dá opinião:
coisa e tal, pão com chouriço.
Bem te entendo, amigo cão,
o que os teus latidos pregam,
não és como os de outra condição,
que falam bem mas não m’alegram.
Bem te entendo, amigo cão,
dizes com um gesto de focinho
o que muitos, por apta opinião,
rebebéu, pardais ao ninho.
domingo, 9 de outubro de 2011
POR UM SÓ MOMENTO
Por um só momento quero ser
o odor moribundo da cera lentamente
derretida
e em plena procissão vestir
a pele dum deus vermelho e alquimista
que, sobre a finura da custódia,
solene, para que me sintas mágico;
mágico, para que me sintas o hálito em chama,
te iluda o cântico
e, enfim, possas caminhar de pé.
Por um só momento quero duplicar-te
frente a frente,
para que chores a tua alma
subaproveitada.
sexta-feira, 7 de outubro de 2011
OS DIAS DESCONTADOS
… eu vos digo que antes passariam o céu e a terra do que passaria uma só letra menor ou uma partícula duma latra da Lei sem que tudo se cumprisse.
Mateus
Inesperadamente, a marca
indelével do destino
soou como um badalo
chocalhando-me o cérebro.
Nota oficiosa
-aos cidadãos atentos
O próprio locutor, notou-se,
Compreendeu:
A catástrofe é iminente e universal.
A crise
o petróleo
o dólar
a crista de altas pressões
e, se necessário, o estado de sítio.
Só por milagre será evitado
O agravamento dos preços ao consumidor.
Para evitar mal entendidos, a
a ordem pública,
a ordem pudica,
a ordem pura
e demais ordens de serviço
serão mantidas.
Deus dará.
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
NOTA
Três apontamentos “históricos”.
O meu actual vagar para estas andanças, permitiu-me “descobrir” três poemas (dois mais um)
que partilharei convosco sem me alongar muito mais em considerações dispensáveis.
Todos eles datam do princípio da década de 70 (do século passado, pois!)
Se os dois primeiros são inspirados em leituras de Nietzsche (quem não leu o filósofo “pirotécnico” do século XIX?); o terceiro é um desmentido a propósito do nome deste blogue, que eu mesmo disse ter origem no título do meu livro homónimo editado em 1983: reponho assim a verdade, dizendo que Corpo de Poema existe nos meus papeis desde 1970.
Publicarei os três poemas, começando por corpo de poema, com a periodicidade habitual: quarta (hoje), sexta e segunda-feira.
O meu actual vagar para estas andanças, permitiu-me “descobrir” três poemas (dois mais um)
que partilharei convosco sem me alongar muito mais em considerações dispensáveis.
Todos eles datam do princípio da década de 70 (do século passado, pois!)
Se os dois primeiros são inspirados em leituras de Nietzsche (quem não leu o filósofo “pirotécnico” do século XIX?); o terceiro é um desmentido a propósito do nome deste blogue, que eu mesmo disse ter origem no título do meu livro homónimo editado em 1983: reponho assim a verdade, dizendo que Corpo de Poema existe nos meus papeis desde 1970.
Publicarei os três poemas, começando por corpo de poema, com a periodicidade habitual: quarta (hoje), sexta e segunda-feira.
CORPO DE POEMA
Dá de ti
o corpo desnu
dado
sem amor
dacar
o grito
nem amor
tecer
o golpe
de rins
dá de ti
o corpo
salivado
amor
i
bunda
pomba
líquida
um e outro
lado
dá de ti
o corpo
amor
fina
derme
do teu ventre
sem suar
sensual
mente.
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
DRAPEAUX ROUGES
Tem pelo menos uma coisa boa este Outono:
o inconformismo dos plátanos, a folha solta;
recusam a morte sazonal; “a voz do dono”,
e empunham bandeiras vermelhas de revolta.
Efabulo. Pois as pobres árvores, já enxutas,
nada pensam. É o seu ciclo; a sua essência.
Mas a vida faz-se de etapas e de lutas:
compõe-se de mudança e resistência.
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