sábado, 31 de agosto de 2019

O RETRATO


Era um daqueles miúdos
pobres, sujos, sisudos,
que se encontram por aí,
à porta de coisa nenhuma,
com fome ou se presuma
porque nos olha e não ri.

Um dos miúdos surreais
expostos nas redes sociais;
seminu, sem eira nem beira,
com o ranho a sair do nariz
(ranho é feio, não se diz…)
brincando junto à lixeira.

Não fosse a nossa virtude
cristã, filantropia e amiúde,
grande peso na consciência,
nem tínhamos dado por ele,
coitado, de seu só tem a pele
a cobrir-lhe a existência.

Figura assim posta a jeito
para um retrato a preceito,
não é miséria, é fantasia;
arte e, bem entendido,
pode até ser promovido
em prémio de fotografia.

O resto é figuração,
falsa fé, desdém, resignação,
demais lutos, manigância…
sentimento que logo se arruma
em lugar discreto e, em suma,
nada que tenha importância.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

AMANHÃ


Cumpridas vinte e quatro horas
sobre o dia de ontem,
aquilo que se esperava ser amanhã
chegou hoje sem novidades de maior.

Era um amanhã esperado
com as mesmas queixas de ontem
e iguais dúvidas de hoje
sobre o futuro, que é já amanhã. 

terça-feira, 27 de agosto de 2019

O FASCINANTE MUNDO DOS SERES HUMANOS


Há dias em que um minúsculo insecto
(uma vespa, por exemplo) nos transforma
numa bolha vermelha e inflamada.
Durante horas ficaremos piegas e ridículos;
faremos tudo para chamar a atenção dos demais
para aquele vermelhão inchado,
que, logo a nós, haveria de acontecer.
Pretexto para reivindicar carícias em atraso;
ocasião perfeita para tornarmos claro
o lado mole da nossa vida dura…

Por essa altura já o pobre insecto estrebucha,
sem defesa a sua vida deixa de fazer sentido
e a solução é morrer de patas para o céu…
A pobre vespa em nada contribuiu
para o desfecho dramático, é a sua natureza.
O ser humano, não: tem por estranho comportamento
mexer em tudo o que vê, estragando.
Depois queixa-se dos inchaços e pede mimo.

Amanhã não haverá memória desta aventura.
Alguém fará um compêndio sobre as propriedades
terapêuticas do veneno das vespas, serão inaugurados
laboratórios e atribuídos prémios científicos
aos que abnegadamente contribuíram para o enriquecimento
da espécie humana e decretado recolher obrigatório
para todos os insectos com potencial curativo,
incluindo as vespas. 

domingo, 25 de agosto de 2019

LUA


Tempos houve em que a lua
era um queijo no fundo do poço,
agora já não creio, mais não posso,
fartei-me de tal insanidade;
ter a certeza nua e crua,
do que afinal não é verdade.
A lua é isto: um planeta branco
que, qual espírito santo,
- mal de nós que pecamos… -
faz crer neste mundo e no outro,
enquanto eu não vou a tanto;
apenas creio neste e a ver vamos…


sexta-feira, 23 de agosto de 2019

VERSOS QUE ENCONTREI NOS BOLSOS


1.

Achei um cêntimo
e guardei-o
dizem-me que não vale nada
e há quem os deite à rua
porque não têm utilidade
como é possível
se há gente que não vale tanto

2.

Perdi o contacto
não oiço
apenas vejo e falo
perdi um contacto
devia ouvir mais
e não oiço

3.

Se dissesse que o coração quase não bate
a palavra quase seria provavelmente exagerada
a razão por muita que ela seja
não me permitirá dizer o meu coração
deixou de bater

4.

Foram de sonho
as minhas férias
sonho de férias
as minhas já foram
sonhei com as férias
foram o meu sonho

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

ONDE A TERRA ACABA


O mar, por tentativas,
escala furioso a escarpa,
encharca, corrói o mapa
em vagas sucessivas.

É a vez do mar
submeter,  insano,
feito oceano
e se aventurar.

Deuses, monstros e mitos
dormem na praia agora
para quem clama e chora
p’la senhora dos aflitos.

Ó mar de medo e águas frias,
sepultura e estrada
que acolheste as caravelas
- não aos homens mas a elas –
se nada vem do nada
que fazemos às alegorias?

Que nos reclamas, insurgido mar,
que queres dum povo
prestes de novo
a embarcar?

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

TRAMAS REAIS


Por onde andou Andeiro,
Leanor, ai Deus
Conde matreiro

E Fernando que fez nela
Beatriz, ai Deus
Fundamentos de Castela.

Quiseram de retorno
Portugal, ai Deus
El Rei formoso e corno.

Nação de alcova e trama
Portugueses, ai Deus
E espanhóis, a mesma cama.

O Mestre João veio depois
Ser Rei, ai Deus
Morreram as vacas ficaram os bois.

sábado, 17 de agosto de 2019

SER COMO O VENTO


O vento leva-me para onde quero estar
e as árvores são minhas amigas…
ali encalho, finjo que me aquieto, que vou parar
e brejeiro, mais adiante, levanto as saias às raparigas.

Se agora corro sou ciclone ou tempestade;
não tarda, uma leve brisa nas cortinas da janela;
tudo depende do sopro e da vontade,
derivo à vista como antiga caravela.

Faço oscilar as folhas ou talvez elas tremeliquem
com a aragem por serem folhas e mais nada,
mas quero que elas pendam dos ramos e que fiquem
só eu vagueio e me dissipo na vida airada. 

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

ARTE DE VOAR


PRIMEIRA LIÇÃO DE VOO
(preâmbulo)

Os pássaros voam como nós
com a vantagem de terem asas próprias.

Os homens, com tanto as por e tirar,
precisam de costas largas, suspensórios
e, mais que tudo, mil razões para voar.

(Amanhã falarei aos pássaros
sobre tudo isto. Espero que me compreendam.)


SEGUNDA LIÇÃO DE VOO


A ventania quebra qualquer desejo
de alcançar o céu, se for vento o que me tolhe.
Talvez seja o medo das alturas.
É isso, talvez seja mesmo isso.

A verdade é que sem qualquer razão
o voo se torna penoso e o céu demasiado alto…


TERCEIRA E ÚLTIMA LIÇÃO DE VOO

Além, um bando de gaivotas adeja ao vento,
interrompem para pequenas correrias no areal…
Elas saberão por que o fazem
e não creio que a minha existência as preocupe.
Deixarei que voem ou não.
Têm asas para saberem o que mais lhes convém.



terça-feira, 13 de agosto de 2019

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA


O fim começa aqui – eis o teu passatempo eleito,
Mário-Henrique, o teu gin-tonic e tua condição.
Afinal, eficazes. Digo, o tonic é tão perfeito
como eu escrever estes versos e me chamar João.

Fazendo de conta que a musa que me inspira
é uma daquelas plúmbeas de rótulo amarelo,
seguro os teus versos – quero lá saber da lira
e puxo o cobertor, que o quarto está um gelo…

Na tarimba refilas, esperneias, fazes cenas
e pedes um lugar na almofada, à cabeceira.
E que consegues, contemplação? Não. Apenas
enfado e a ressaca de uma enorme bebedeira.

domingo, 11 de agosto de 2019

GÁS É O DUTO


de gás é o duto flatulento
o canal
fedorento
que cheira mal


sábado, 10 de agosto de 2019

OFÍCIO DE POETA


O ofício de poeta tem que se lhe diga…
Matéria-prima em ruptura permanente
e, pior ainda, o que mais intriga
é que todo o verso se crê urgente.

O tecido é frágil, fino, quase puído,
junta palavras bailarinas numa dança
e que por fim se transforma em vestido,
todo enredado em si, como uma trança.

Não tem prova, se for a gosto, assentar bem,
e a sobranceira figura logo ali se retrate
com o aprumo mais exacto que ela tem,
o poeta não passa de um erudito alfaiate.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

OS ELEMENTOS


Um fio de luz, de lua;
um fragmento de mar…
contingentes todos eles.

Só a noite é inclusiva
para quem dorme nos seus braços.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

SONHO

Camila Loureiro

Quando à noite sonho que o sol se deita a meu lado
fico imóvel para não acordar a minha fantasia.
Levanto-me depois e o sol já lá não está:
remanesce, guardado na manhã de todos, lá bem no alto,
onde ninguém se atreve a roubar-mo,
não vá eu ficar sem sonhos e dormir às escuras.



domingo, 4 de agosto de 2019

O TREMOÇO


O raio do moço
engoliu o tremoço
e eu disse moço
cospe o caroço
é casca não posso
disse o moço

com o alvoroço
caiu ao poço
partiu o pescoço
rais parta o moço

lá se foi o almoço
e o pobre do moço

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

DIÁRIO DO CAVADOR


I
A leira a eito
o canto fundo
a terra ajeito
é quase tudo

Estrumo e rego
o torrão duro
ancinho cego
certo e seguro

E a reza do dia
que o senhor bendiga
não esta agonia
apenas a espiga

II

Caneiro de água
canto de rouxinol
maldita mágoa
bendito sol

Suor vertido
semente imaculada
fruto apetecido
ou fruto ou nada

Temporal que mata
da semente à flor
sem dó nem data
mata o cavador

Mas se outra não for
a verdade que  encerra
não cava a dor
a dor cava a terra