terça-feira, 30 de agosto de 2016

À LUZ DO TEMPO


De espera se faz o tempo
de um e de outro lado:
melhor, é esperar atento;
pior, é não ter esperado.

Há um momento dado
em que  pode o vento
delir, por ser soprado,
e já não chegamos a tempo.

domingo, 28 de agosto de 2016

PENSO, POSSO E PASSO


Há coisas que não faço,
se me dão pelo pescoço:
ponho-lhes em cima um traço,
não as quero ou não posso.

E é então que penso
naquilo que afinal faço,
que ainda assim é imenso,
ao todo, em pouco espaço.

Às vezes é que não posso
por ser demasiado extenso:
bato o pé direito e destroço
e assim já nem as penso.

Faço portanto o que posso,
o que é dado que faça
e deixo preparado um esboço
enquanto o tempo não passa.

E é assim que me convenço
em tudo o que ultrapasso:
se posso, passo e penso
é porque penso, posso e passo.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

MEIO SEGREDO



Ainda não, mas vai acontecer um dia
esmerar-me e contar-vos um segredo,
digo, meio segredo, por simpatia,
de modo a continuar segredo.

Se vos contasse tudo perdia
o segredo e a história toda a graça.
Assim, pela metade, fica para outro dia
o alvoroço da praça.

Contando que vos conte um dia
o segredo meio guardado,
pode a notícia tardia
ser mais do vosso agrado.

Ou não. Se então já não tiver
meias palavras de lado,
tanto faz ter como não ter
meio segredo guardado.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

POEMA CONSEGUIDO (QUASE)


Era uma vez uma borboleta
de vida efémera e pouco lisonjeira,
de olho nela estava um poeta
de sorte igual e vida passageira.

O pouco tempo de vida airada
foi voar, voar, voar, voar…
que um só momento poisada
lhe causavam falta d’ar.

Voou então a seu bel-prazer,
de flor em flor, à sorte,
até que um dia, antes do sol nascer,
poisou nela, inevitável, a morte.

domingo, 21 de agosto de 2016

O PROBLEMA DA ALIMENTAÇÃO



Incapaz de uma lágrima de água benta,
choro o animal com vestígios de fome
e jamais aquele que por fome me alimenta,
por assim ser irrelevante se o bicho come.

Se porventura a alimentação for vegetal,
por regra, já nada me constrange ou apoquenta:
ajuda a digestão, dizem, não faz mal
e é mais aconselhável a qualquer dieta.

Uma certa dúvida entretanto permanece:
se o vegetal não me comove e faz boa digestão
e é a carne pecadora o que mais me apetece,
o mal não está em mim; é problema da alimentação.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

SONHO DE MIM



Vivo de sonhos e espuma,
e de planos que nunca traço.
Ao todo é coisa nenhuma,
habitando o mesmo espaço.

E enquanto sonho que vivo
neste imaginário compasso
vou coabitando comigo
à distância de um abraço.

Insisto – se é que insisto,
vestígios de mim ou cansaço –
em ser, nunca desisto
do sonho de que me faço.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

SOBRE AS ÁGUAS


Escrevo sobre a espuma das águas,
o impulso é natural e imutável.
Prefiro o bater das ondas à maré de mágoas,
que é mais persistente, inalterável…

Escrevo na água, disse, efémero,
como bicho esgravatando imprevistos,
ao ponto de encontrar coisas do género:
sal, almas ocultas ou anticristos.

Mas todo o descoberto é natureza
consabida ou agora pronta a despontar.
Se nada for é pelo menos impureza,
que em nada impede o mar de ser mar.

sábado, 13 de agosto de 2016

SEM QUALQUER IMPORTÂNCIA


Mortais de ciência exacta
e filosofias respeitáveis,
enquanto vivos. O que mata
é sermos assim, beliscáveis.

Beliscáveis de vário sentir
de famosos a sem nome:
uns, expiram a fingir
e os demais morrem de fome

legalizada, constitucional.
E até aqui nada de novo;
nada para além do normal.

Em caso de urgência, estorvo
ou belisco orçamental,
pode trocar-se de povo.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

ONDE A TERRA ACABA



O mar, por tentativas,
escala furioso a escarpa,
encharca, corrói o mapa
em vagas sucessivas.

É a vez do mar
submeter,  insano,
feito oceano
e se aventurar.

Deuses, monstros e mitos
dormem na praia agora
para quem clama e chora
p’la senhora dos aflitos.

Ó mar de medo e águas frias,
sepultura e estrada
que acolheste as caravelas
- não aos homens mas a elas –
se nada vem do nada
que fazemos às alegorias?

Que nos reclamas, insurgido mar,
que queres dum povo
prestes de novo
a embarcar?

sábado, 6 de agosto de 2016

NOVE LUAS


Nove sóis de luz
nove sóis de março
‘inda mal eu nasço
já além me pus
já além me pus

Nove vilas corro
nove vilas venço
e não me convenço
que um dia morro
que um dia morro

Nove ais de mim
nove encruzilhadas
mil enganos nadas
e chegou ao fim
e chegou ao fim

Nove meias solas
nove quase amores
novecentas dores
nove carambolas
nove carambolas

Nove aguas turvas
nove nuvens rasas
dai-me as vossas asas
às primeiras chuvas
às primeira chuvas

Nove luas novas,
nove luas cheias,
são como colmeias,
novas caras novas
novas caras novas.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

O GRILO VERSILIBRISTA



Eu e o meu caminho, taco a taco…
Dava gosto ver aquilo,
à vez um poema e um grilo,
tudo no mesmo buraco.

Saquei o grilo, não rimava,
o desasado insecto
de gravata amarela e fraque preto;
só o poema cantava.

Meti o poema numa gaiola das antigas,
trato dele, dou-lhe serralha
e fico à espera que me valha
e me alegre com cantigas.

Ah, a pergunta remanescente:
que fiz eu ao bicho, ao grilo?
Em vez de o prender ou dar-lhe asilo,
dei-lhe liberdade permanente.

Sei que é vivo ainda (o grilo)
sigo-o à distância e gosto de ouvi-lo.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

O INCORRUPTÍVEL VOO DAS PEDRAS


Silvam como as aves, a céu aberto,
no sentido que lhes dá a pontaria
e depois é tarde para apelo ou lamento:
determinadas, jamais voltam ao ninho.

As pedras são incorruptíveis por natureza
e voam, duras de ouvido ou qualquer outro sentido,
aguardam, pacientes, o arremesso,
seja o seu caminho intifada ou poesia.

Não olham para trás, não aceitam esmolas,
luvas, promessas ou lugares marcados.
São como as aves, já o disse:
voam porque para isso são pedras.