sexta-feira, 31 de agosto de 2018

OLAIAS


Quase nem me apercebia
desta beleza pendente:
cachos de flores, nem os via,
em orgia florescente…

Se Judas, em seu lugar,
baixasse do tronco robusto,
lá se ia o meu olhar
e não ganharia p’ró susto…

São lustres de ornamento,
se não acreditardes, olhai-as,
que à vista dão alimento
e luz ao espírito, as olaias.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

VIDA CAPRICHOSA



Ai flores, cujo rescender
me colhe por mariposa,
dai-me tempo e a ver
quanto o meu voo não ousa.

Coberto de cores e flores
como anjo querubim,
mais as mágoas e dores
que brotam dentro de mim.

Voarei num golpe d’asa
sobre pétalas e poemas,
mesmo sem sair de casa
e em vez de asas ter penas,

Menos flores, menos sorte
e mais água abundante;
mais vidas além da morte
e menos de agora em diante…

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

A MEDALHA


Um dia, com os sonhos ainda povoados de fantasia,
competimos e os adultos atribuem-nos uma medalha.
É o nosso primeiro ouro. Guardamo-la carinhosamente
num local seguro e que ao mesmo tempo permita
nunca a perder de vista, para a exibir
sempre que possível e contar a façanha da sua conquista.
Mais tarde saberemos que aquela medalha
não correspondeu à conquista de qualquer pódio,
mas da simples participação no convívio escolar.
Sentimos a primeira frustração da nossa vida,
a primeira que sabemos ter força para superar,
embora doa bastante, como as que virão depois.
Destas, não o saberemos ainda, terão o seu tempo.
Mesmo assim, mantemo-la guardada numa gaveta,
junta a tantas inutilidades que fomos acumulando.
Não nos ocorreu, então como hoje, desesperadamente,
procurarmos a primeira medalha da nossa vida,
o sonho que nela empenhamos, o desencanto depois…
Onde teremos guardado aquela medalha de pechisbeque,
para a admirarmos e voltarmos a ser crianças?! 

sábado, 25 de agosto de 2018

EXPECTATIVA E REALIDADE


Tinha de ser gigante
e imponente como um elefante,
de voz impante,
mesmo sem altifalante.
Tinha de ser importante
e aspecto deslumbrante
brilhasse como um diamante
e, não obstante,
pueril como um infante.
Tinha de ser sonante,
superiormente interessante,
puro, sem corante
nem conservante.
Em suma, elegante, cativante,
de olhar crepitante
e de simétrico semblante,
bom amigo e bom amante.

E afinal,
caí que nem um pardal,
saiu-me este animal,
híbrido, convencido, boçal,
um pãozinho sem sal,
todo ele convencional
armado em fulano de tal,
certificado, internacional,
sem passar de um marginal.
Vai já por via postal
ao seio original
aqui, que não leve a mal,
não fará mais arraial.
Enganei-me, o que é normal,
Ilusões, etc e tal…
Dói mas não é mortal.
Sobre o tema, ponto final.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

RETÓRICA



Lá iremos – disse,
sem ter noção
que é uma chatice,
uma contradição

saber de antemão
que lá iremos:
clara presunção,
ainda assim de somenos,

pois não devemos
ter a ilusão
de fazer o que queremos
por mera recreação.

Recomenda-se moderação
- é o que temos… –
E, claro, ponderação.
De resto, lá iremos. 

terça-feira, 21 de agosto de 2018

PERFIL DOS DEUSES


Tantos anjos e deuses por esses lugares acima,
Incluindo as assoalhadas do sótão, que nunca visitei
por medo do escuro, pó acumulado e escusada canseira! 
E de tantos outros debaixo de pedras, de insuspeitas
pedras, de silenciosas pedras, de pedras sem culpa
de serem pedras; nenhum melhor que o outro,
todos em fila de espera, todos surdos como as portas
que batem estrondosamente na minha paciência infinita.

Alguns vão caindo dos altares que para eles ergueram
- nem no local de culto tiveram arrojo para lhes meter mão –
outros ardem na fé que lhes devotam e extinguem-se
de pungimento em faustos cinzeiros.
Os que nunca morrem vendem crucifixos nas feiras
e espargem com água benta quem dessa água bebe.

domingo, 19 de agosto de 2018

POEMA DO MAR

Foto Eunice Mendes

Confia em mim – disse o mar –
eu protejo-te, avança…
(ele, que não é flor de se cheirar
nem amigo de confiança)

Contudo, tem charme e mistério,
ousa matar sem piedade:
tanto pode zangar-se a sério
como depois ser bondade.

É assim que o mar ensaia
ondas e marés em vaivém,
pelo menos visto da praia
é tudo o que o mar tem.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

LIVROS


Palavras brilhantes umas, outras feitas com a frase,
figuras de estilo, eloquentes, originais do narrador.
Mortas, a maioria, salivadas ou consumidas, quase
não se dá por elas, mas esse não é o mal maior.

Pior é se já morreram na mente de quem as leu;
se generosamente se consumiram sem proveito…
Ai dos livros mortos, expostos nas vitrinas do museu!
Já de nada servem; urnas de palavras sem efeito.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

IMAGINÁRIO


Há quem veja além…
o que não vê:
ilude, ilude-se, crê,
para ver o que convém.

Isto tem que se lhe diga,
fazer de conta que come;
arrisca morrer à fome,
com mais olhos que barriga.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

CÁ DENTRO DE CASA


Cá dentro de casa
nada me faz mal,
calor em brasa
ou brisa outonal.

Se houver vendaval,
chuva persistente,
ficam no quintal:
cá dentro só gente.

Amigos, quero dizer,
de boa companhia…
Calha às vezes não ser
mas fica pra outro dia.

Cá dentro de casa
é como vos digo:
um dia, um golpe d’asa,
outro dia a sós comigo.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

NÁUFRAGOS


Falaremos um dia sobre a água dos rios e das fontes,
como hoje, levianamente, falamos sobre os destroços
das caravelas naufragadas, num sem-fim de água e sal,
no século dezasseis, digo, águas passadas,
se a sede, falando por nós, não tiver já dito de viva voz,
que os náufragos e todos os mareantes à deriva
descobriram faustos mundos para neles perecerem
fartos de barriga e de algibeiras.
Falaremos um dia sobre a água dos rios e das fontes,
se houver dia e tempo para conversar sobre águas passadas.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

ESPECIALIDADE DA CASA


Não sou especialista em absolutamente nada.
Garanto que hoje está um dia de sol abrasador,
o que não surpreende por ser verão e no verão
ser costume acontecer por estas bandas.

Nada disto significa que não haja gente
que não ache o sol escaldante como eu
ou que tenha opinião particular acerca do verão,
não se revendo nestes juízos, regra geral estúpidos 
e sem qualquer relevância.
Dizia que não sou especialista em absolutamente nada;
que serei, talvez, um quase especialista em evitar especializar-me
no que quer que seja, como fica aqui demonstrado.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

A DÁDIVA


Para dizer toda a verdade,
se a memória não mente,
tudo começou na puberdade,
era coisa de adolescente.

Algo vivo que remexia
ao mais subtil pensamento:
ora esticava, ora encolhia,
tal era o atrevimento!

Tinha um aspecto estranho
e manhosice de sobra
para alterar o tamanho,
como se fosse uma cobra.

E naquela doce ignorância
convivi por algum tempo,
sem lhe dar grande importância
em artes de passatempo.

Cobra, vampiro, isso era,
que de sangue se nutria,
o bicho que ali acolhera
era a mim que ele comia.

Pensei: vamos mas é a ver
se o safado me compensa;
se está em mim para comer,
não sirva eu só de despensa.

Guardei dentro de mim
esta dúvida perseverante
e, durante uns anos, enfim,
acho que compensou o bastante…

sábado, 4 de agosto de 2018

POEMA DOS PAUS


Os pauliteiros musicam,
dançam, saltam, encantam,
como há os paus que brincam
e brincando se levantam.

Há poetas que, neste exercício,
andam aos paus, pantomimas…
Eu ponho paus desde o início
e assim faço as minhas rimas.

E há paus de ensino,
paus juntos que viram ripas
e outros de corte fino
que são paus de virar tripas.

Aos caras de pau, simulados,
vistosos mas de fundo mau…
sobre esses paus mandados
o melhor é pôr-me a pau.

Há os nobres, com brasão,
os paus de canela e quebranto,
que são de outra condição,
para não falar no pau-santo.

E de pau chega por ora,
que é uma forma de dizer:
não sou dos que por aí se arvora
de ser pau p’ra toda a colher.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

BICHO-DE CONTA


Em pequeno era o bolinhas
e era tal a minha afronta
com a curiosidade que tinhas,
que me fazia de conta.

Eu sou um bicho-de-conta
sensível, tenho o meu charme;
coisa ou bicho, faz-de-conta,
se ousarem tocar-me.