terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A VOZ DO MAR


O mar atirou-me

um búzio para que ouvisse

o som das suas loucuras,

dos seus lamentos.

Começou por uivar blasfémias,

que todo o som ali contido

era tudo quanto existia,

que todo o som ouvido

além do búzio

continha perigos

difíceis de conter e imaginar.

Ele, o mar, era o senhor absoluto

de tudo quanto existia:

uuuuu…uuuu… uuuu… - Dizia.

Ele era a alegria e o medo;

o bem e o mal;

a palavra e o segredo.

Era ainda o horizonte e o infinito

e o sal da verdade.

Deus, qualquer deus era invenção sua,

dele, do mar.

Senhor da língua e das onomatopeias:

Uuuuu…uuuu…uuuu…

Mar por ser imenso, como gente,

tudo e nada dentro de um búzio, apenas.


 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

FANTASIA



Assim te relembro no que há em mim de mais profundo:

busto de mar e espuma; saia apertada, de areia fina…

e sempre que assim te lembro desvaneces e, imagina,

já te não vejo e o que afinal recordo em ti é todo o mundo.

 

Todo o mundo, todo o mundo que me corrói e mina.

Íntimo, imaginado, que numa fracção de segundo,

me cega e convoca mais premente e mais fundo,

muito aquém donde começa; muito além donde termina.

 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

RODA DA VIDA


Havia uma roda, a roda rolava

por ser seu ofício, ofício de roda,

que rolando a seu modo andava

rodando toda a vida, não a vida toda.

 

A roda era a água e a água escondida

rolava a roda na roda em seu labor

em busca de água, de água e de vida,

sem queixa nem mágoa, como prova d´amor.

 

Passou o tempo, a água também.

O vento, o sol, o bom e o mau tempo

e uma vida inteira, que nunca se atem,

sem vida nem roda, água de ar e vento.

 


 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

MALES DE ALMA



 

Há dias em que a alma vai com a camisa usada

e nem damos conta de ficar em tronco nu dentro do peito.

De pronto, uma réstia de sol dissipa a madrugada,

ateia o fogo e faz-se água cristalina o gelo contrafeito.

 

Melhor assim: alma escovada, uma penugem dispersa

própria da idade. Nada há como sentir o que de nós se fala.

Breves correntes de ar, alguma náusea de forma imersa,

que vindo à tona, vê-se na cara, logo se acorre a calafetá-la.