sábado, 29 de setembro de 2018

FANTASIA


Vivo de sonhos e espuma,
e de planos que nunca traço.
Ao todo é coisa nenhuma,
habitando o mesmo espaço.

E enquanto sonho que vivo
neste imaginário compasso
vou coabitando comigo
à distância de um abraço.

Insisto – se é que insisto,
vestígios de mim ou cansaço –
em ser, nunca desisto
do sonho de que me faço.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

ALFORRIA


Decrépita folha de águas já passadas,
jaz à sede; à míngua de atenção;
morta de mil vidas exaladas.

Prostrada, como folha seca e sem função,
não longe das demais, alpendoradas,
ei-la fruto ileso, liberto e chão.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

NAQUELE TEMPO


No tempo em que os animais falavam,
- Comecemos por aqui, disse o homem.
Todos ferraram os dentes na presa,
excepto um, que era mudo, deus
de todos eles e mordia pela calada.

Isso era bom para o futuro ecuménico.
Ficou assente que os animais
perderiam na fala o que os homens
aproveitassem na fé. Assim nasceu a obesidade
e deus pode engordar no coração dos homens. 

domingo, 23 de setembro de 2018

SALGUEIRO CHORÃO


o salgueiro chorão
queria ser nuvem
água chovida não

de tronco vergado
o salgueiro chorão
tremia, molhado

pendia o salgueiro
na corrente selvagem
do recente aguaceiro

o barranco jorrava
águas de aluvião
e o salgueiro chorava

lágrimas de ilusão

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

SIMPLES PÁSSAROS


Um melro, uma alvéola e dois pardais,
vasculhando a relva. Não mais.
Volta e meia, todos acodem a um silvado,
mas nem sempre; só de vez em quando,
e adejam à uma, para o mesmo lado,
sem que a tal se possa chamar um bando.

Um qualquer susto ou rotina apenas,
(comunicam-se por invisíveis antenas…)
A correr, a saltitar ou de um salto alado
atrapam o petisco que ali se pôs a jeito
e todos se servem, chilreando lado a lado,
que para eles não existe preconceito. 

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

JAZZ DE SONHO


Nós, os quatro, na jam-sasion
eu e vocês
improvisámos sobre um standard antigo,
Art Davis, Coltrane, Miles Davis.
Sublime, meus irmãos!
Como foi que vos encontrei hoje no meu sonho?

Os nós dos meus dedos
ainda sangram ao ritmo
das notas batidas sobre a mesa.
Depois voaram, as notas e as dores,
como sempre acontece com o Jazz.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

ACIDENTAL PRAIA


Ocidental maré, preia-mar,
não choveu como o previsto.
Anda um tipo a navegar,
a navegar, p’ra isto.

A oriente, em ferro, a gare.
Notícias trazem a lume
devagar, mais devagar,
o Portugal do costume.

Pouca terra, pouca terra,
por aqui é tudo mar,
praia que o oceano encerra,
e muito azar, muito azar.

sábado, 15 de setembro de 2018

AXIOMA VIOLADO




Os pobres têm a barba crescida,
os ricos têm barriga;
correndo o risco de alguma ligeireza,
o contrário é erro da natureza.

Nada disto é ciência ou convicção,
apenas motivos de observação.
Eu mesmo, a quem a barriga cresce,
a barba me assedia e floresce…

Em que ficamos, que verdade é esta?
Como é que vamos sair desta?
Proponho: a barba cresce-me por gosto,
quanto à barriga… é imposto!

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

NATUREZA VIVA




Ontem, o chão estava coberto de pétalas
como se tivesse chovido…
Eu sei dos engodos do tempo e sei também que as pétalas
são da beleza o castigo.

Sei, e disso me gabo, dos ardis da natureza…
Gosto das folhas, das flores, da astúcia dos ventos,
mas sei também quem me preza
e de quanto dos ais são lamentos.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

O SOL


A tépida estrela, que esta manhã
surgiu a leste no horizonte,
deixa lentamente a claridade
e desce ao seu destino crepuscular.

Ai se não fosse a poesia,
onde estaria este sol agora…


domingo, 9 de setembro de 2018

O SOM DA CONCHA


Uma concha, uma pequena concha,
uma conchinha com a capacidade
de um dedal de água – e sal –
contém um poema imaginado
por um marinheiro errante.
Não se pode pedir mais
a quem guarda todo o mar dentro de si.

Uma concha, só uma pequena concha,
que leva dentro todo o mar.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

A LUZ E A TREVA


O candeeiro da cidade
(o mais poupado da rua)
resolveu gastar a lua
em vez de electricidade.

havendo necessidade
e sempre que vê a lua
logo lhe chama sua,
mordomo da claridade.

Mas um dia, por maldade,
uma nuvem cobriu a lua,
enegrecendo a rua,
o candeeiro e a cidade.

Não sei se isto é verdade;
quem mo contou foi a lua.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

POBRES QUADRAS


Das quadras que tinha à mão
nem uma sobrou p´ra mostrar:
umas têm fome, querem pão;
outras, estão com falta d’ar.

Das esfomeadas, que direi eu?
Todas elas de rima pobre,
já nada possuem de seu,
quanto mais do que lhes sobre.

As outras, em completa apneia,
não sei que bicho lhes mordeu,
se é peçonha ou coisa feia
ou apenas um ar que lhes deu.

Sobraram estas insatisfeitas,
que nem delas podem falar:
avassaladas, às demais sujeitas,
à fome e com falta d’ar.

domingo, 2 de setembro de 2018

LUGARES QUE ME VISITAM


Há lugares que me visitam, indiscretos…
assomam, para ver se me surpreendem,
disfarçam-se de souvenirs, de amuletos,
e por aí se aquietam, mais não fazem.

Na verdade, voltam-me a jornada do avesso
ou finjo eu que esta é a realidade,
que nunca vi tais visonhas, que não conheço,
que são apenas sombras sem afinidade.

Quando, por fim, se dão por satisfeitos
voltam, cada qual ao ponto de onde veio,
para meu sossego e deles ver-me livre enfim.

Uns seguem voluntários, outros contrafeitos
mas, astutos, todas eles, segundo creio,
escondem-se em algum lugar dentro de mim.