sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

POEMA ECOLÓGICO DE NATAL


Um dia destes enfeito-me de azevinho,
bagas vermelhas em cima e aos pés caruma.
Vestido assim, (a ver se adivinho):
humana árvore de Natal ou coisa nenhuma.

De azeviche não, (ai a língua portuguesa!)
À maneira sóbria das damas antigas,
fazendo sinal da cruz quando se sentavam à mesa
e no decote exibiam  um atado de figas.

Visto-me assim de vermelhos frutos,
que da natureza sou  e de vermelhos gosto
e sem vaidade digo: são gostos mútuos;
de hipocrisias basta, é nisso que eu aposto.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

CONSOLAÇÃO


Não lembro nada do que ia escrever,
por culpa do malvado computador.
Às vezes liga, outras, não me deixa dizer
onde me dói ou deixou de doer.

Que seja assim, quero lá saber do que lhe dói…
nem o que me apoquenta eu sei;
se ele é meu mestre, meu herói
ou eu que escrevo além, fora da lei.

A par disto queria dizer alguma coisa:
não me sinto bem; coisa pouca
mas, apesar de tudo, mais coisa, menos loisa,
tudo não passa de amargos de boca.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

UM ADEUS COM CHUVA PARA A FOTOGRAFIA


Chove, chove sempre no adeus:
tem muito mais poesia…
Não sei se nos teus olhos, nos meus
é pura fantasia.

Adeus, adeus. Literariamente
repete-se o substantivo,
ainda que por dentro, literalmente,
não faça qualquer sentido.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

UM LIVRO ESTRANHO


E por que não um deus bom aqui deitado,
ainda que fingindo o sono, pois não dorme
o que é omnipresente, ente inspirado,
dá conforto, vivifica e mata, e mata a fome.

E em verdade me diz a copiosa literatura,
enquanto me aconchego, lençol adentro:
- Eis o caminho, a chave e a fechadura,
e se resguarda a sete chaves por dentro.

Esta é a palavra e todas as palavras ditas,
o que se vê e mesmo o que não se nota:
metáforas, alucinações e alegadas visitas;
ensaia o sono dos justos, adeja e faz batota.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

LIBERDADE


Liberdade, quem a tem
chama-lhe sua
(minha e tua)
como convém.
No meio da rua
e não refém,
que cabeça a tua!


segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O DESPLANTE DA FLOR


desplante:
a planta
em flor
desponta

a planta
pronta
em flor
de espanto
ou despique
de amor

suplanta
pétala
a pétala
ou seja lá o que for

sábado, 17 de dezembro de 2016

BALADA DE MÃE


Um filho é como um pássaro: voa.
Depois do amor, depois do ninho,
vem o adeus, a despedida que magoa,
quando, por fim, busca o seu caminho.

A mãe sabe, por isso não são à toa
a provação, o incentivo e o carinho,
que em seu tempo alimenta e doa,
para todas as horas, a rosa e o espinho.

O mundo é agora a sua casa.
- Voa, meu menino, voa alto e além,
onde já não pode a alma e o olhar de mãe.

E se os ventos forem de feição,
guarda-me também o coração
e alarga o céu a golpes de asa.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O GATO E O RATO


O gato tem um rato
e vivem em paz
ou o rato tem um gato,
tanto faz.

São, de fonte segura,
felizes no seu recato:
expandem ternura,
o gato e o rato.

Se o rato esfria
e o gato quer conversa…
Um dorme, outro mia
e vice-versa.

No fundo, no fundo,
em sentido exacto,
o amor é profundo
entre o gato e o rato.

Se um dia ouviram
uma história diferente
ou vos mentiram
ou então era gente.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

A RONDA DOS DEMÓNIOS


Os demónios cercam-me a casa. É seu costume.
Os deuses deixaram de o fazer há algum tempo.
Mas não o fazem por inveja ou por ciúme;
apenas porque é o tempo agora, o seu momento.

Tentam-me, espiam-me, induzem-me consentimento
a tudo o que é fácil, descartável e a bom preço,
e eu já farto de promessas, quase não argumento,
deixando que se convençam do jeito que lhes pareço.

O resto é fácil: como se faz às pulgas, entalam-se
entre as unhas dos polegares. É o mais comum.
Remédio santo: perdem de vez o pio; calam-se

à vez – a fila dos novíssimos arcanjos – um a um
e, mortos-vivos ou acabrunhados, danam-se
por não lhes vender a alma por preço algum. 

domingo, 11 de dezembro de 2016

O PIOR QUE PODE ACONTECER



O pior que pode acontecer é a ponte não aguentar o peso;
a pedra não suportar a outra pedra; a água congelar
de medo e frio; o sol morrer de tédio…
O pior que pode acontecer é o melhor parecer pior ou, pior,
os teus olhos já não distinguirem o fogo no fumo.
O pior que pode acontecer é esta anáfora crescer como os frutos
e rebentar como as bolas de sabão.
Pode ser melhor o pior de antes ou ser mau o melhor que temos.
Como podes saber o pior se outro ainda pior estiver para vir?
Onde é que tens estado? Que bem te faz às feridas o mal que sentes?
Muito pior será se as tuas mãos já não se conhecerem
e se alvoroçarem por socorro, uma após outra,
sem água, sem barco, nem sitio algum para o naufrágio.
Ter certezas de tudo isto é ainda bem pior.


sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

POEMA DO MEU NATAL


Não se sabia quantos sóis haveriam de nascer
ainda e quantas luas novas e quartos crescentes
e luas cheias e outra vez quartos, mas minguantes,
e já eu dava sinais de desassossego, às voltas
de outra coisa redonda, que era o ventre da minha mãe.
Depois nasci e, sem me conhecer (nem eu a ela)
fui assistido sujo e nu por uma parteira velha
e experiente, porém simpática, foi o que me disseram.
Bastou tirar os cinco quilos de mim daquela aflição
para acreditar sem esforço nas suas qualidades.
Nunca sobre isto se escreveram estórias transcendentes,
comemoro normalmente os meus aniversários,
embora preferisse manter-me sem eles, os anos,
que, todos juntos, me vão dando algum trabalho.
A conta já pesa e não estou arrependido de nada. 

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

O INEXPUGNÁVEL BISTURI


1.
De finíssimo recorte,
técnica apurada,
com um pouco de sorte
não dói nada.
Da sorte e, a bem dizer,
da anestesia,
que a frio faz doer
em demasia.
Quase que dá,
um arrepio de medo
e depois se saberá,
que ainda é cedo.
Não rasga, fende
ritual, litúrgico.
Mal de quem depende
dum bisturi cirúrgico.

2.
Há pouco estava aqui
ocioso, esterilizado,
- disse o cirurgião - o bisturi.
Tem de ser usado
ou o paciente morre,
coxeará, talvez…
(anda mas não corre)
ou vai-se de vez.
Poderá ter sorte
de aprendiz,
e escapar à morte
por um triz.
Fiquemos por aqui,
assunto resolvido.
E o bisturi,
onde se terá metido?

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

TRÊS POEMAS HÍBRIDOS DE PENDOR FILANTRÓPICO


1.

Amealhei cuidadosamente
as velhas lâminas de barbear,
os sapatos incapazes de novas meias-solas,
o pó dos livros e as fitas e os laços
das últimas prendas de natal.
Guardei com ternura os neologismos falhados,
que treparam a memória distraída.
Espero que o tempo e a erosão
confirmem este poema ecológico.

2.

Se, das velhas lâminas,
contasse que nos seduz ainda o marketing
das suas embalagens importadas,
Se vos lembrasse que, hoje, o couro dos sapatos
é quase a nossa pele curtida,
que não lemos porque o pó se acama
além dos livros, na cultura,
e o natal vai ficando oco como os chocolates,
enquanto nos restam cada vez mais apenas fitas e laços,
assim não teria que inventar mais palavras:
este seria um poema político.

3.

Mas se insistisse, ridículo,
acreditando nas pelo menos quinze barbas
que promete cada lâmina,
na cor dos sapatos, no verniz dos laços e fitas,
que cada natal anuncia em capa de revista
(papel cromolux, high color, assinatura por um ano e porte pago)
certamente colhido pelas palavras
alheias ao texto, mal dormido,
deixaria por legado
um poema sem consequências.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

AUTOCLISMO



O mundo encheu-se de mentiras,
milhares de caritativas mentiras.
Muitas fazem crer que o trigo
nasce com a espiga para baixo
e outras tantas, que não há solução
para tal enfermidade.

Confesso que por vezes sinto raiva
da pequenez humana que me cerca…
reflito depois e, pensando melhor,
limito-me a assegurar que o esgoto
funcione para a fossa e o entulho
nauseabundo siga o seu caminho.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

OUVIR


Envelhecemos como as pedras
e o primeiro sinal é não ouvir; ouvir mal.

Treinámos a vida inteira,
fomos selectivos , usamos filtros.

Mas agora não. É o sentido
que definha e morre o bicho do ouvido.

Às pessoas pedimos que repitam
e o tom da música temos de subi-lo.

Mas o chilrear dos pássaros
e o assobio da brisa nos ramos da árvores
não há como tê-los decorado:
é tarde agora para os aprender
a quem nunca lhes dedicou uma só ária. 

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

COMO NASCE UM POEMA


Volto a estes pobres versos,
que se entranham na poalha
dos papeis onde estão imersos
como se fossem mortalha.

Vivos, asseguro que estão,
pois respiram ou, melhor dito,
arfam. Creio que é da solidão,
que deixa qualquer um aflito…

Puxo por eles. Como atrás disse,
são versos declinados, sem conteúdo,
nunca disseram nada que se ouvisse,
cuidando que ser verso é tudo.

Fui tentado mais uma vez
a deixá-los em repouso e sem stress.
Pensei: “como não há duas sem três
vamos ver o que acontece”.

Juntei-os aos demais dispersos,
fiz-lhes festas, dei-lhes carinhos
e concluí: o poeta é quem mima os versos
mas os poemas nascem sozinhos.

sábado, 26 de novembro de 2016

AGORA O TEMPO



O tempo cá vai andando
em passo outonal, a cores,
chuva e sol, variando,
conforme os seus humores.

Agora um frio de rachar,
(dizem, de cortar à faca)
não dá para apanhar ar,
nem espreitar da barraca.

É sempre a roda do tempo
que decide os pormenores,
salvo qualquer contratempo
do anticiclone dos Açores. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

IMAGINÁRIO


Há quem veja além…
o que não vê:
ilude, ilude-se, crê,
para ver o que convém.

Isto tem que se lhe diga,
fazer de conta que come;
arrisca morrer à fome,
com mais olhos que barriga.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

O DIABO NÃO VEM



Rosnou e rogou praga
o inepto com desdém
e não há gente que lhe traga
nem diabo nem ninguém.

Tal era o bicho careto
(feio, chifrudo e mau)
que por vergonha ou medo
não passa de um cara de pau.

Tudo afinal está conforme.
Mas na certeza, porém,
que nem o povo dorme
nem o tal diabo vem.

domingo, 20 de novembro de 2016

A FACE E O VERSO


Se o mundo tivesse rosto
seria ainda mais evidente,
numa das faces o sol posto
e na outra o sol nascente.

Tal como a cara da gente,
que não seria suposto,
entrar em quarto crescente
com mataduras no rosto.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

DO DISCURSO


Não demovo
a cor ao cravo
e de novo demovo
a casca ao ovo

enquanto me comovo
com o cravo
como o ovo
e aprovo o cravo
uma ova a cor do ovo

pelo povo não demovo
a cor ao cravo

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

ELEIÇÃO



Carlota era uma mulher feliz
até que um dia, como agora diz,
procurou  taluda na matriz
e decidiu a questão com um xis.

Na verdade saiu-lhe furado
o intento de um bom resultado:
bom foi ele para o sítio errado;
acertou em cheio, mas ao lado…

Hoje grita: que “foi engano,
quis na conversa do fulano”
e agora lhe causa mais dano.

Carlota cuidou ser correcto
mas foi como engolir cianeto;
pior a emenda que o soneto!

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

POEMA DIURNO


Não nasce a noite em lugar algum:
a noite é somente a morte de mais um dia;
o intervalo vazio e escuro
entre o entardecer e a madrugada.
Não nasce a noite em lugar algum:
dar à luz supõe a claridade do dia;
a treva, o sono eterno e sem regresso.
Agora mesmo fujo à escuridão da noite,
aos pavios e néones de imitação
e navego no meu barco com o mundo inteiro
à bolina e ao sol que além me espreita.

sábado, 12 de novembro de 2016

CAIS DE EMBARQUE


Ancorada a caravela, que mais posso
se não amarrar com ela, junto ao cais
e pedir, de proa ao vento, um osso,
uma sopa aguada e pouco mais?

Já tudo está à vista; a limpo e descoberto:
dúvidas e sombras dantes cultivadas,
hoje são pobres ilhas ou desertos
sem gente, almas e outros predicados,

que não seja luto, fealdade e desamor;
consentimento de fé, gente profana,
dependendo apenas do letal valor,
seja planta, bicho, mineral ou raça humana.

Pela verdade, voltando ao ponto de partida,
desenhado no cais, parede da memória,
que posso ser, quem me dá o silvo de partida,
onde acabo eu e começa a história?

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

DAS ÁRVORES



Alegria incompleta onde as palavras
nidificam entre pássaros e metáforas

em cada madrugada tingem mais de pólen
e sobressalto o empedrado das avenidas
das solenes avenidas com bar ao fundo

respiração avulsa e inquietude
é quanto as árvores podem dar-nos
se ainda tivermos tempo e fingimento

terça-feira, 8 de novembro de 2016

DAS PEDRAS


Gritam até ao limite do silêncio
- única manifestação consentida
que se saiba conhecem o segredo dos sismos
e a religião das sementes estéreis
não se provou que calem
as lágrimas dos pássaros vagabundos
e enquanto projécteis é irrelevante
investigar se dormem

afinal de contas as pedras são o que são
embora não se dê por isso

domingo, 6 de novembro de 2016

MEMÓRIA DE CASTELO BRANCO


Não foi tão diluviana a enxurrada
de há sessenta anos, nem o tufão
foi coisa de mazela amargurada;
mas aguaceiro fraco também não…

É certo que esbulhou as avenidas
e arrebatou o coreto do passeio
mas, passado o susto fez despedidas,
 e logo se dissipou, tal como veio.

Morreu gente, sim, e feridos houve
dos maus ventos em reboliço;
mas também houve povo que não soube
ou não se ateve, ou deu por isso.

Mal sabíamos que, tempo passado,
ressarcidos, haveríamos de ganhar
a polis pós-moderna, qual tornado,
trazendo entulho de volta ao seu lugar.

Se outro vento igual nos castigar,
( longe vá o agouro!) se bem não há-de,
mal já não fará, que nada há para levar,
nem restos de memória da cidade…

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

ECOPONTO DE ENCONTRO


Não se dão ao luxo
de vir cá’baixo
despejar o lixo

Metem no embrulho
estorvo e entulho
preso com atilho

Até certo ponto
a mais neste assunto
só o ecoponto

Vidro papel plástico e ferro
tudo ao barulho
deixo o alerta:
um dia dá o berro

Verde azul e amarelo
(respectivamente) fica aqui dito
mas se for daltónico
está lá tudo escrito

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

FINISTERRA


Chegada ao fim, que quer a terra ao mar?
É sede ou pressa de ali se dissolver?
Que pode querer a terra se não continuar,
achar caminho, tentar sobreviver?

Mas se é o mar que adentra insaciado
em cada quinhão de terra, nos areeiros,
então façamos nós o que nos têm ensinado
e sejamos, enfim, eternos marinheiros.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

OUTONO


O tempo voa de qualquer maneira
e disso não faz nenhum segredo.
Uma hora que se oferece prazenteira
e a noite ateve-se mais cedo.

O sol é agora de pouca-dura,
nem aquece o lugar que é seu:
insinua-se, parte de forma prematura,
e deixa-me o olhar vazio refém do céu.


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

ABRAÇO


Um abraço
dado
é um laço
premeditado 

a razão
de braço dado
com o coração

nó consentido
bem apertado
com sentido
figurado

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

DRAPEAUX ROUGES



Tem pelo menos uma coisa boa este Outono:
o inconformismo dos plátanos, a folha solta;
recusam a morte sazonal; “a voz do dono”,
e empunham bandeiras vermelhas de revolta.

Efabulo. Pois as pobres árvores, já enxutas,
nada pensam. É o seu ciclo; a sua essência.
Mas a vida faz-se de etapas e de lutas:
compõe-se de mudança e resistência.


segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O BAILADO DOS PÁSSAROS


Asada dança, alada melodia,
enquanto há vento há esperança,
rodopia, balança; balança, rodopia…

Se o par desfila e balança
ou voa ou adejará um dia.
A dança desafia; desafia a dança.

Enquanto o par porfia,
se volteia e de júbilo avança,
basta já de tanta filosofia!

sábado, 22 de outubro de 2016

GUERRA DE PALAVRAS


Vou carregar a pistola
com palavras já usadas,
bem sonoras, versadas,
aprendidas na escola.

São como balas reais:
fazem brecha no impacto
quando disparadas de facto
e vêm a ser mortais.

O primeiro tiro é à sorte,
que se não mata, intimida;
o segundo, certeiro, faz ferida
e se não matar é uma sorte.

Com tiros para o ar e demais
palavras sem sentido
pode alguém ser abatido
por danos colaterais.

Aqui chegado, fim de papo:
nem mais um tiro no pé,
nem frase de rodapé
e meto a pistola no saco!

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

VOZ PRÓPRIA


O ruido confunde-me, de vozes povoado:
que sim, que não, que assim-assim…
Perco-me, fico sem saber qual o meu lado;
em qual deles faço parte de mim.

De repente, o silêncio é absoluto, agora,
a voz sucumbiu, subitamente morreu
ou então o som que se extinguiu por fora
grita-me por dentro e sou finalmente eu.

Oiço vozes recônditas, íntimas, familiares,
pouco me importa se de boa ou de má fala:
são minhas, não duvido, e por isso peculiares,
são as vozes de mim que ninguém cala.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

PINTOR DE PALAVRAS



A palavra cinzento mata devagar
e a vermelho lembra hemorragia;
a palavra preto dá claustrofobia,
não adianta pintá-la, falta-me o ar.

A palavra amarelo pouco me rala:
tanto me faz que exista, como não;
já a palavra verde lembra-me o pão
e a azul entranha-se como uma bala.

Quase todas me servem de bengalas:
o branco e o lilás para dormir a sesta,
as demais uso-as uma vez por festa…
Palavra que me apetece pintá-las.

sábado, 15 de outubro de 2016

PERFUME DE ROSA


Hoje cheira-me a rosas. Há sempre um dia
no Outono que me cheira a rosas.
Melhor: a pétalas de rosa caídas na minha mão.
Aquietam-se fingindo que dormem
e exalam esse perfume, que é eterno nas rosas.
Hoje cheira-me a rosas, sou eterno como elas
e o aroma que se desprende
paira, cerca-me os sentidos,
para que eu viva perpetuamente em seu botão.
Quando o Outono chega, este é o único privilégio
que a alma me consente.


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

CONTEMPLAÇÃO


O tempo enche-me de horas passo a passo,
as pausas e o tempo inteiro a horas várias,
de forma que não sei onde arranjar espaço
sem recorrer às horas extraordinárias.

Se estou bem, o tempo voa, acelera,
porém, se fico mal nunca mais passa.
Com tudo isto já não sei o que me espera:
Se fique mal, se fique bem ou o que faça.

Melhor seria que o tempo passasse e não
me tivesse em conta a cada passo ou momento
e que esta aparente contradição
sem passar por mim, me fosse apenas passatempo. 

terça-feira, 11 de outubro de 2016

DA VIDA


Não não tenho pressa
não sou de pressas
ainda que o julgues
ou isso te pareça essencial

deixo a tarde adormecer num beijo
quero da noite apenas a cintura

eis o meu recado: não tenho pressa
e ao dizer-to fico
com uma pressa enorme que amanheça

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

D'


Vai-lhe tão bem
o lenço no regaço
ou será que ela vem
nas ondas que eu faço?

A modos que voa
são seus seios asas
ou sou eu que à toa
plano sobre as casas?

Leva-a consigo o vento
com carícias e pressa
ou sou eu que a invento
para meter conversa?