sábado, 29 de novembro de 2014

PALPOS DE ARANHA


Passam-se coisas estranhas
ou, pelo menos, esquisitas:
na terra dos parasitas
anda tudo às aranhas,
salvo as ditas.

Passando aos pormenores,
há os que por acaso mero
tecem teia a partir do zero:
aracnoexploradores,
salvo erro.

Usando de baba e peçonha,
são servidos de bandeja
mesmo que a gente não veja
por outros bichos sem vergonha,
salvo seja.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CIDADE TRAVESTIDA


O ar coquete e aramado da cidade
faz o olhar estrábico, contrafeito,
dá náuseas mal lhe bate a claridade,
que de adejar se lhe perde o jeito.

Os módulos do franchising estrangeiro
rompem o casario gasto e escondido
de fina vista, quer de olho, quer de argueiro,
qual gravata em pingente encardido.

Antes ou depois, o moderníssimo deserto
que, de inverno ou em pleno estio,
releva para longe o que está perto
e me deixa a alma viva por um fio.

Ah, como me divirto, andando por aí
a coberto de autênticas obras de arte!
Ferro assim e ferro assado, aqui e ali,
isso fazia eu, modéstia à parte…

Os repuxos de água são um encanto:
descuida-se o cidadão menos avisado
e, antes que a novidade cause espanto,
já tem o bárbaro esguicho  no rabo.

Mas os artistas ou o arquiteto de agora,
bradam como os vendedores das feiras:
módulos, baguetes e por aí fora,
como são feitas as minhas prateleiras.

Bancos de madeira exótica, envernizados,
fingimento de aço a imitar as caravelas
e nós, bons cidadãos embasbacados,
como vivemos o tempo todo sem elas?

Só o Amato, de Lusitano nome, aponta,
mas para um lugar incerto, ao calha:
talvez ingénuo ou de pouca monta,
ou será um estranho lóbi que o amortalha?

 Respiro, consumidor de vento, compulsivo,
mas não os sítios, os prédios e os cheiros
que sempre me fizeram sentir vivo
e agora matam em desvãos alcoviteiros.

Se a minha meninice foi tragédia,
singrando a pulso, ganhando a praça,
agora e na hora da vil comédia,
que outra aflição espero senão farsa?

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

FIRME


De luas não, de lua
carregada às costas
até ao fim da rua
enorme. A quanto apostas?

De sonho não, de sonhos,
pés assentes no chão
mais os versos que componho
e prosas de aluvião.

De luzes não, da luz
que sobra e põe à prova
os reis caminhando nus,
vou de lua em lua nova

sábado, 22 de novembro de 2014

CUMPLICIDADE


Quis soltar as mãos
ao encontro dos teus frutos.
Senti-as contornar os relevos do lençol
com cuidados de serpente
e, como gatos, subirem
ao cume dos teus seios de água.
Mergulhei então a pele
em cada poro do teu corpo
e tu nada saberias se as minhas mãos
não fossem cúmplices da nossa vontade.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

ONDE A TERRA ACABA


O mar, por tentativas,
escala furioso a escarpa,
encharca, corrói o mapa
em vagas sucessivas.

É a vez do mar
submeter,  insano,
feito oceano
e se aventurar.

Deuses, monstros e mitos
dormem na praia agora
para quem clama e chora
p’la senhora dos aflitos.

Ó mar de medo e águas frias,
sepultura e estrada
que acolheste as caravelas
- não aos homens mas a elas –
se nada vem do nada
que fazemos às alegorias?

Que nos reclamas, insurgido mar,
que queres dum povo
prestes de novo
a embarcar?

terça-feira, 18 de novembro de 2014

AS JANELAS DAS FLORES


Da janela vejo flores e elas
a olharem para mim
debruçadas em janelas,
que só elas o fazem assim.

Sinto o perfume das flores
como tranças de uma fada;
respiro-as e cheiro as cores,
mesmo não cheirando a nada.

Fico suspenso, preso a elas,
como o caule que as alteia:
elas oscilam, inclinadas nas janelas,
e eu saúdo-as com a mesma ideia. 

domingo, 16 de novembro de 2014

COM PENA MINHA


Escrevo e voam de mim
as aves mais eloquentes;
escrevo e fico com pena…


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

AI MARIPOSA

Este poema foi publicado no blogue em 2013. Reponho-o agora porque gosto dele e “encontrei” esta magnífica mariposa

Ai mariposa,
quanta heresia
há entre a prosa
e a poesia.

Se voares, garbosa,
é poesia,
mas se fores de fantasia
é prosa.

Definirei as loas
neste possível quadro:
poesia é quando voas;
prosa é se te guardo.

Ou então doutra maneira,
ao jeito da minha caneta:
mariposa é poesia inteira;
se for prosa és borboleta.

Esquece tudo, vai!
de nada queiras saber,
há gente que te chama butterfly
e eu apenas te quero ver…


quarta-feira, 12 de novembro de 2014

ALFORRIA


Decrépita folha de águas já passadas,
jaz à sede; à míngua de atenção;
morta de mil vidas exaladas.


Prostrada, como folha seca e sem função,
não longe das demais, alpendoradas,
ei-la fruto ileso, liberto e chão.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

TRÂNSFUGAS


Não fujas
tu és todos os lugares
não te escondas
entre cortinados
que tu mesmo teceste
não finjas
desconhecer Setembro ou Novembro
que aceitaste
com argumentos contrafeitos
e que mais tarde sacudiste do capote
que não era nada contigo

dispara à queima roupa

verás o meu sangue ganhar terreno

ah a tua pressa
pode lá haver quem a denuncie!

sábado, 8 de novembro de 2014

A MINHA TERRA


Não é o meu terreno
e, sem querer, disse terreno, que evoca a minha terra,
a terra que dá fruto; a terra que nós consumimos
e acaba por nos consumir.
A areia, as pedras, o mar e a lua não são o meu terreno…
Corre-me nas veias um pouco de tudo isso,
balanço como o mar; tenho fases como a lua;
crispo como as pedras duras; o pó da areia
é como os dias do meu descontentamento…
A minha terra é onde se semeia e dá fruto,
Não esta comezinha imagem que não se come ou bebe.
Tem um lado bom: não caleja.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

UMA CASA ASSIM


Quero uma casa que respire flores
e nela entre o seu aroma e a luz;
quero uma casa  de mil cores,
toda bordada a ponto cruz.

Um casa com alpendre e janela,
irradiando cores e glamour
e eu acorde sonhando dentro dela
eternamente, enquanto dure.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

PEDRA A PEDRA


Uma pedra que arrima,
ainda outra pedra,
outra pedra em cima.

Não é a perfeição;
é no início
toda a construção.

Pode ir abaixo, cair.
Mas levanta-se
e torna a construir.

sábado, 1 de novembro de 2014

GLOBALIZAÇÃO


Alguém inventou que tudo seria global
mesmo que não fosse
para que uns pudessem estar perto e outros longe
sem o saberem. Afinal estamos longe, o que é uma pena.
Perto está quem pode comprar a distância.
Ainda não é desta que a luta de classes acaba…
Por global entende-se uma esfera, mas não é isso,
nem o é por a terra ser redonda.
A globalização significa que a totalidade dos meios e dos recursos
está ao alcance de todos e é essa a embófia que nos vendem.
Não sei por que razão a miséria e as mortes 
são sempre do mesmo lado. Talvez porque a Terra
é achatada nos polos, o que deve dificultar a manobra.
Um dia destes, quando esta informação chegar
às aldeias do ocidente e às outras por acidente,
poderemos finalmente – ao contrário dos deuses que,
como bem sabemos, não adormecem nunca -  dormir tranquilos,
mortos de cansaço.