1.
Amealhei cuidadosamente
as velhas lâminas de barbear,
os sapatos incapazes de novas meias-solas,
o pó dos livros e as fitas e os laços
das últimas prendas de natal.
Guardei com ternura os neologismos falhados,
que treparam a memória distraída.
Espero que o tempo e a erosão
confirmem este poema ecológico.
2.
Se, das velhas lâminas,
contasse que nos seduz ainda o marketing
das suas embalagens importadas,
Se vos lembrasse que, hoje, o couro dos sapatos
é quase a nossa pele curtida,
que não lemos porque o pó se acama
além dos livros, na cultura,
e o natal vai ficando oco como os chocolates,
enquanto nos restam cada vez mais apenas fitas e laços,
assim não teria que inventar mais palavras:
este seria um poema político.
3.
Mas se insistisse, ridículo,
acreditando nas pelo menos quinze barbas
que promete cada lâmina,
na cor dos sapatos, no verniz dos laços e fitas,
que cada natal anuncia em capa de revista
(papel cromolux, high color, assinatura por um ano e
porte pago)
certamente colhido pelas palavras
alheias ao texto, mal dormido,
deixaria por legado
um poema sem consequências.