quinta-feira, 28 de março de 2013

TELAS FINAIS - O SILÊNCIO

Beta esperava-o sentada à mesa entretanto posta. O arroz e os pastéis de bacalhau já estavam entre o morno e o frio.

- Que cara trazes, homem.

- É a minha ou já não me reconheces.

- Vá, não desconverses. Senta-te e come.

- Não tenho apetite.

Contrariando a afirmação sentou-se, olhou para Beta fixamente, trincou um pastel de bacalhau e mastigou lentamente.

- Vens de barriga cheia, é o que é…

- Por falar nisso, que me dizes tu dos boatos que andam por aí?

- Ó valha-me Deus, Zé, quantas dessas é que eu oiço diariamente de outras vizinhas? E até de mim não é a primeira.

- Pois, mas logo o Alexandre.

- És mesmo tonto! Não vês que são invenções dessa bruxa lá de baixo? Viu-o há uns tempos vir cá a casa para lhe arranjar a bainha das calças, lembras-te, e isso para ela é a prova provada, a bruxa!

- De qualquer modo não tenho apetite, come tu.

Beta ficou em silêncio. Por um lado sabia-lhe bem todo aquele ciúme, mas por outro estava preocupada com o ar abatido, de ombros caídos e testa pregueada que o marido ostentava.

Optou por calar-se. Na verdade não tinha grande coisa a acrescentar, pensando apenas que a culpa é dos mutismos diários, do entra e sai, da rotina que esmaga sem aviso e faz apodrecer todas as palavras úteis no momento e supérfluas se requentadas.

Sem adiantar mais palavras à conversa, não fossem elas, as palavras, significar o que não está certo de querer dizer, José Cruz saiu de casa sem avisar. Beta apercebeu-se pelo estalo do trinco da porta ao fechar.

Desceu as escadas saltitando e reconhecendo de cor cada uma delas. Todas são diferentes se as subimos e descemos diariamente durante anos, como é o caso.

Na rua o silêncio do costume. Ninguém. Quem com ele se cruza, também caminha mudo e sozinho. São simples passadores de outros lugares.

No café do bairro sim, ouviam-se vozes. Discutia-se futebol, talvez.

Atirados para a periferia, os moradores dos modernos bairros deixam o coração da cidade ladrar como um cão, miar como um gato, balir como um jovem bêbado e jamais tiquetaquear como um coração de verdade. Limitam-se a passar com outro destino; a incursões mais ou menos culturais; não a estar, a viver. Sem coração a vida não é possível.

Empurrou lentamente a porta de vidro e a vozearia cessou como se estivesse conectada ao punho da porta. O balcão entupia e ficava oculto pela clientela que se revezava em rodadas de cerveja. Só uma mesa estava ocupada por quatro parceiros do jogo das cartas. Estes continuaram a bater os trunfos a cada vaza com estrondo no tampo da mesa.

A dona do café, de avental cintado, mostrou o rosto anguloso de camafeu romano por uma nesga entre a barreira formada pelos clientes, dirigindo-se a José Cruz:

- Deseja alguma coisa, senhor…

Por incrível que pareça, nunca ali tinha entrado.

Não reconhecia qualquer dos rostos. Sentiu-se um estrangeiro na sua própria rua. Arrepiou caminho sem responder à mulher que não sabia o seu nome e voltou ao caminho para lado nenhum.

Os candeeiros de iluminação pública dão sinais. Competem em altura com os prédios e, se não lhes chegam aos telhados, pelo menos iluminam as ruas quando cai a noite. É chegado o seu momento de glória, mas a sua ainda intermitência obriga José Cruz a olhá-los porque os seus olhos estão ciosos de ver tudo o que há muito tempo não enxerga. Não se sabe o que pensa, sabe-se que caminha, mãos nos bolsos em direcção ao lado poente do bairro.

Afinal ainda sobrevivem as velhas habitações que o empreiteiro dava mostras de odiar visceralmente. Esboçou um sorriso mordaz ao pensar que aquelas casas, afinal, sobreviveram ao Calisto, falecido já.

A curiosidade e a algazarra proveniente daquela espécie de pátio, fizeram-no aproximar-se a confortável distância. Parou por instantes.

Havia por certo uma qualquer comemoração: ouvia-se música à mistura com gritarias de crianças brincando. Um bidão serrado ao meio fazia de assador. O fumo do churrasco chegava até si de forma intensa e agradável. Era uma festa com certeza ou então seria assim que aqueles moradores, marginais para os restantes habitantes do bairro, se comportavam todos os dias. Não tinha resposta. Tantos anos a viverem ali ao pé e é a primeira vez que dá razão da existência daquela gente.

Subitamente ficou com fome. Atribui a gula ao cheiro dos assados. Ainda há pouco tempo o estômago lhe rejeitava um insignificante pastel de bacalhau e agora sente uma fome profunda, que o cérebro lhe recria por cobiça quase infantil.

Era noite já feita. Agora sentia-se mais só do que nunca. Gostava de fazer parte daquela festa mas não era ali o seu lugar. No seu mundo são mudas as criaturas, escondem-se atrás de cortinados e persianas, espreitam e, quando falam é sobre vizinhos com apelidos numéricos, sobem e descem as escadas silenciosamente e fecham-se em casa como bichos.

Regressou a casa. Apressou o passo. A fome roía-lhe as entranhas.

José Cruz estava convencido que, saciando aquela fome, fosse ele a fome que fosse, mudaria o rumo da sua vida, resolveria todas as angústias e males dentro de si.

Beta via uma telenovela na televisão da cozinha. “Ainda bem”, pensou.

- Já guardaste os pastéis?

- Ia guardá-los quando a novela terminasse…

- Não é preciso. Estou com uma fome de morrer!

Quando Sancho Pança, popular escudeiro de D. Quixote e por ele levado à efabulação maior do que seria comportável a um cérebro preguiçoso, disse a Joana, sua mulher, quais os planos e sonhos que tinha para ambos, dela nem ouviu perguntar: “Que é isso que dizeis, Sancho, de senhorias, insulas e vassalos?” Não ouviu Sancho Pança nem leu ainda José Cruz no livro encadernado que decora a estante da sua sala de estar.

É claro que aqui se vive e morre como em qualquer outra parte do mundo, mas nestas ilhas entre ilusória felicidade e profunda mágoa, a única diferença é que, por estas bandas, sem que os interessados o saibam, se habita em caixões de silêncio muito antes do silêncio do caixão.

fim