quinta-feira, 21 de março de 2013

TELAS FINAIS - O NEGÓCIO

No escritório, o empreiteiro em pessoa veio à porta receber o jovem casal. Era um tipo de meia-idade, obeso, de cara redonda e vermelha, a bem dizer, mais a ponta do nariz, onde pequenas varizes azuis sobressaiam, do que as faces bolachudas e descaídas para o pescoço flácido e rugoso como uma persiana. Esfregava as mãos sapudas em concha ao mesmo tempo que mostrava um sorriso de imitação cheio de dentes amarelos.

- Casadinhos de fresco, hem?

Beta não abriu a boca. Apenas fazia um sorriso forçado sempre que o empreiteiro a fixava com olhar que lhe causava nojo. Foi José Cruz quem assumiu o diálogo:

- Casamos para a semana, ainda somos noivos.

- Nesse caso em que posso servi-los?

- Uma casa. Queremos comprar um andar.

- Ora é isso que eu faço. Têm algum em vista?

- Praticamente.

- Há muito por onde escolher. Mas entrem e sentem-se, tenho fotografias.

- Nós já temos uma ideia. Os prédios azuis da rua de cima são seus, não é verdade?

- Os prédios azuis, os prédios azuis… material de primeira. Tão jovens e já sabem o que é bom!

O homem vendia o seu peixe de forma descarada. Todos os prédios são feitos dos materiais que sobram de outros prédios e os azuis não são excepção.

- O quinto direito. Tem uma placa na varanda…

- É o que eu digo: os jovens sabem mais que os velhos. O quinto direito, o quinto direito. É o melhor!

Calisto, o empreiteiro, sócio gerente da empresa Calisto & Calisto, Ldª., cujos sócios são, além do próprio, a sua excelentíssima esposa, que de casas percebe, como costuma dizer em privado, o mesmo que de lagares de azeite, sendo que nunca viu ou esteve perto de tais engenhos.

Sentindo que o negócio estava garantido, Calisto falou longamente sobre as excelentes condições do local, dos acessos, da proximidade dos principais serviços públicos, das lojas que ali iriam abrir, da óptima fracção que era o quinto direito, “a melhor de todas!” e, claro, da supervisão do Engenheiro Valência que, teve o cuidado de sublinhar em tom tão magoado como fingido, o advertiu para o baixo valor, muito próximo do preço de custo, que ele, Calisto, estava a pedir.

- Há um pequeno senão, certamente já repararam, as casas degradadas ao fundo da rua. São de gentinha que viveu sempre ali e acha que por isso tem o direito de nos explorar, pedindo agora milhares de contos para abandonarem o local.

- Isso a nós não nos faz qualquer diferença.

- Eu sabia, eu sabia, rapaziada nova quer lá saber disso. Mas aquilo vem abaixo não tarda, que o Engenheiro Valência não brinca em serviço.

- E quanto pede o Senhor…

- Calisto

- O Sr. Calisto, pelo quinto direito?

- Rapaziada nova, rapaziada nova… oito mil contos, sem garagem.

Pela primeira vez desde que entraram no escritório, José e Beta olharam-se de frente: ele com cara de “o que dizes” e ela com a de “tu é que sabes”. Na verdade não era sítio para conversas, por isso José Cruz rematou:

- Amanhã vimos cá dar resposta.

- Muito bem, muito bem. – Aceitou Calisto despedindo-se – Olhem que há por aí muita gente a vender gato por lebre…

As manhosas dúvidas de Calisto não tinham fundamento que não fosse a própria ganância e a arte de vendas aprendida nos antros da especulação e da esperteza saloia, que foi a sua escola.

Quando no dia seguinte o casal regressou ao escritório Calisto & Calisto, Ldª para confirmar o que confirmado estava, ambos exibiam um sorriso de orelha a orelha, o empreiteiro percebeu que o negócio estava fechado.

Os pais de José Cruz amealharam durante uma vida de sopas e côdeas. Agora resolveram abrir os cordões à bolsa, como o tinham feito já na altura em que o filho foi estudar para a cidade, verdadeira razão de tão sacrificado aforro. Valera e continuava a valer a pena pelo Zé, único filho, bancário de profissão, com uma bela carreira à sua frente, mas por enquanto a precisar dum empurrão, de um impulso, como fazem os pássaros aos filhotes maduros nas primeiras tentativas para abandonarem o ninho.

- Viemos para sinalizar o andar.

- E já trataram do empréstimo com o banco?

- Eu sou bancário, está tudo tratado.

- Cá me parecia que a sua cara não me era estranha…

Calisto esfregou as mãos em concha, como sempre faz quando a vida corre de feição, e tirou duma gaveta a papelada para a celebração do contrato.

Daniel Filipe diz em A Invenção do Amor: “Segue-se um programa de música de dança”. É o que acontece durante as próximas semanas com José Cruz e Maria Alberta.

Sem outro pensamento que não seja casa, casamento, papéis e registos, convites, testemunhas, assinaturas, compromissos, tanta coisa para garantir a felicidade e convoca-la para toda a vida!

A felicidade é um baile: roda, roda, roda sem parar, até a cabeça tomar o ritmo da roda, igual ao ritmo do mundo, sempre volteando em busca do equilíbrio e da ventura.

Continua