Agora, com a nostalgia já mitigada e transformada em sorriso numa subespécie de mofa, comentam as fotografias do casamento, apontando com o dedo o que então era comunhão de bens e de apetites e o tempo transformou em burlesco e demudado, porque a vida lhes moldou a forma de pensar, as inclinações dos gostos e a consistência da alma. Chamam a tudo isto evolução por mera falta de vocabulário mais adequado.
Mas as fotografias lá estão no álbum próprio e uma delas, em caixilho, a dois, permanece na cómoda do quarto em lugar destacado, a par duma outra em que a Sónia, de quatro anos, sentada num banco de estúdio, faz o gesto da “pitinha põe o ovo”.
Mas no dia do casamento, nesse tudo tinha cor e luz; tudo era novo e brilhante. Se em algum lugar assim não foi, nada constou, excepto o preto e branco dos seus fatos de circunstância, mas mesmo esses tinham matizes em que o futuro não era beliscado, pelo contrário, davam o tom solene do evento, fazendo deles únicos e de profícuo destino.
A celebração religiosa teve vestes de panos brancos e de aleluias pelo ensejo que as Escrituras guardam, mas também por assumirem eles essa ressurreição comemorada para uma nova vida reforçada com o casamento.
- Vivam os noivos! – Gritou Alexandre, já um pouco entrado de misturas alcoólicas.
- Vivam! – Responderam em coro os restantes convidados.
E os noivos abriram o baile com uma imitação barata duma valsa de Strauss.
Olhavam-se nos olhos com ternura. Efabulavam quanto aos dias felizes, aos filhos que haveriam de gerar e tudo o que mais permita a vida a partir daquele ponto azul, agora invisível, mas sempre tiquetaqueando no peito, que é o ninho de ambos, novinho em folha, como é o bairro, a rua e o que demais esperam do futuro.
Não passava o enlevo para os convidados, que por estas ocasiões apenas querem festa, incluindo Alexandre, que vai correndo de mesa em mesa com mimos para as solteiras.
Para os noivos é diferente: já desejam ficar a sós, tocarem-se, para além dos fatos obrigados pela cerimónia, na pele que adivinham tentadora de prazeres não saciados por qualquer valsa, por mais apaixonada que seja.
Em casa, no ninho azul, só haverá lençóis bordados nas orlas e travesseiras de igual modo desenhadas a fio de seda. A ocasião é única e o casamento é para toda a vida. Ainda há pouco o juraram na igreja e por isso trocaram alianças e beijos de compromisso. Mas os beijos em que agora pensam são de natureza mais simples e pagã, de promessas bem distintas: precisam das labaredas que o desejo ateia e faz dos corpos almas transpiradas até se abandonarem de cansaço, prazer e satisfação de todas as dores e males que possam existir, num êxtase semelhante ao que hoje ouviram do padre na celebração religiosa da Missa Pascal, que precedeu os votos que ambos fizeram.
Era já tarde noite quando a festa terminou. Vieram então despedidas conforme a condição de cada um mas todas renovando os votos de felicidades, com mais ou menos perdigotos saltando das bocas, com mais ou menos embargos da fala, todos bem comidos e melhor bebidos. Estava na hora de cada um voltar ao seu lugar, incluindo os pais dos noivos que não “queriam incomodar” e tinham contratado já um carro de aluguer para os levar de volta à aldeia.
A casa cheirava ainda a tintas e vernizes, haveriam de trocar esses odores por perfumes próprios como os animais fazem para marcar o terreno. Tirando esse pequeno incómodo, a casa estava perfeita. Tão perfeita como a vontade de a habitar e, por fim, poderem dizer: a nossa casa.