sexta-feira, 15 de março de 2013

TELAS FINAIS - A CASA

Sete horas da manhã, Domingo de Páscoa. José Cruz saiu da cama de mansinho. Maria Alberta não deu conta e, se por acaso deu, não nos pareceu a nós. Nem um nem outro recordavam o Domingo de Páscoa de há 27 anos. Este ano o feriado veio mais tarde no calendário e o aniversário do casamento já tinha ocorrido no mês passado.

Este era talvez o dia mais estúpido do ano: duplamente feriado; o alívio da folga não tinha a compensação de um café aberto, pelo menos àquela hora. Teria de manter-se ali por casa, fazendo de faz de conta, que estas lides não têm objectivos e metas a cumprir, nem as atenções de Beta, que tudo acha obrigação e nada mais que isso. Dirigiu-se para a sala. Estava silenciosa e escura. Apenas dois ou três dos primeiros raios de sol atravessavam as persianas como fios de luz e poeira e desenhavam no chão outras tantas bolas luminosas como esferas de vidro. Passou em revista todos os objectos mudos que talvez o contemplassem e, em surdina, lhe agradecessem tão insólita visita. Olhou o aparelho de televisão, agora mais parecido com a velha ardósia da escola primária, depois a mesa de jantar conversível feita de pinho envernizado. A faixa de linho bordada que a adornava rigorosamente ao centro, fora ele que a oferecera à mulher pelo seu aniversário há dez, onze ou talvez doze anos, não se lembrava já. Por último virou-se para estante, da mesma mobília, com duas portas do lado direito, em vidro, que tinha dentro, em perfeita harmonia, os copos e cálices alinhados a rigor por alturas e funcionalidades. A um canto sobressaiam garrafas de licores e uísques, quase todas por abrir. Do lado esquerdo, as pratas, os bibelots e uma colecção de cinco volumes, de fina encadernação em couro, cujos títulos e autores respectivos se faziam anunciar em folha de ouro nas lombadas. Retirou um ao calha. Desviou o naperon que cobria a mesa e dispôs-se a ler o que fosse. Recordou a rapariga elegante e cheirosa que um dia, pelo início da sua carreira de bancário, por aí, ainda havia aquele balcão corrido e todos os colegas acorreram em busca dum olhar ou sabe-se lá o quê da moça que parecia atrair a atenção dos homens. À medida que se foram apercebendo que o intuito da aparecida era a venda de livros e nada mais que isso, esgueiraram-se para as suas ocupações, deixando o Zé Cruz na situação de quase ser obrigado à compra daqueles cinco volumes de autores famosos de todo o mundo. Pensando bem, foi o argumento que José Cruz encontrou para si mesmo, por que não comprar aqueles livros tão bem cuidados e de autores de qualidade insuspeita, contra a entrega imediata e pagamento em doze prestações? Por trás, os colegas, sem que ele o suspeitasse, faziam apostas. Uns que o Zé comprava, outros que apenas esticava os dois dedos de conversa com a simpática vendedora. Ganharam os primeiros, já o sabemos nós.

Levantou a pesada capa e logo na primeira página, em letras de um bastardo francês com arrebites semelhantes a gavinhas para dar um ar mais erudito, podia ler-se: D. Quixote de La Mancha e, por baixo, Miguel de Cervantes. Já tinha ouvido falar e lembrava-se até duma figura de homem grotesco e redondo escarranchado num burrito magro e obediente que mal podia com o seu peso. Por que diabos nunca tinha aberto aquele livro. Aquele e os restantes quatro, pensou. Passou algumas páginas e eis que o texto começa. Demorou alguns segundos para decifrar a primeira letra que se escondia um pequeno quadro também rendilhado como na primeira página e mergulhou na leitura.

Se a esta calma matinal com o sol ainda a dar os primeiros passos se pode chamar silêncio, chamemos-lhe então isso mesmo. Beta continuava sem dar acordo de si e a penumbra da sala dava ambiente para esta aventura nunca experimentada antes.

Leu rapidamente a primeira página mas hesitou, ao virar a folha, dera-se conta que nada lhe tinha ficado na memória. Voltou ao princípio. Procurou absorver quase letra a letra o texto, virgem para si, até quase soletrar a erudita descrição do Cavaleiro Andante que vivia no mundo dos sonhos. Chegara novamente ao fim da página e, fosse por magia ou outra artimanha qualquer de difícil explicação, continuava sem conseguir recordar-se do que até aí tinha lido.

O fenómeno não lhe era completamente estranho. Afinal já o experimentara várias vezes no banco, quando lhe caíam em cima, logo pela manhã, resmas de normas de serviço e circulares. Mas estas traziam números, taxas, juros, percentagens e, às vezes, até equações. Tinha de relê-las e em muitos casos solicitar a ajuda de colegas mais experientes na matéria e atreitos a leituras, não fosse fazer má figura com algum cliente mais exigente, que os há que querem saber de assuntos para além de onde o Judas perdeu as calças. Achou por isso que a solução seria ouvir-se. Retomou a leitura, desta vez em voz alta. A meio da página, a primeira, que ainda daqui não saímos, sentiu ranger a porta e ao mesmo tempo entreabrir-se lentamente. Perdeu a concentração e fixou-se na entrada da sala. Era Beta que acordara entretanto, ajudada pelo murmúrio da sincopada leitura do marido.

Tinha o robe vestido e o cabelo ainda vincado pela almofada. Já sabemos que não é mulher de se produzir antes da hora do almoço. Mas hoje está ainda um tanto enxovalhada. Talvez tenha tido uma má noite de sono ou o zumbido do Zé lhe tenha soado estranho aos ouvidos, interrompendo um qualquer sonho bom que não chegou ao fim.

- Que fazes aí, Zé?

- Nada, nada. Ia agora mesmo arrumar o livro.

Levantou-se como uma mola e foi colocar a obra no local onde há bem pouco tempo a tinha retirado com tanta curiosidade e vão proveito. Mentiu. Não sentiu necessidade de grandes explicações ou não o saberia explicar convincentemente.

Beta, ao contrário, sentou-se devagar numa cadeira lateral da mesa, bocejou sonoramente e apoiou a cabeça entre as duas mãos. Não nos parece que esfregue os olhos e muito menos que queira ajeitar o cabelo. Está cansada. É assim que costuma achar-se quando não tem ainda os fusíveis todos ligados.

- Por que falavas, Zé?

- Eu?

Ia mentir de novo, mas recuou. Porquê mentir? Que mal tem ler um livro, ler um livro em voz alta? Ainda assim…

- Estava a passar os olhos ali pelo…

Já não se recordava do título.

- Que te apetece hoje para o almoço?

Interrompeu Beta, desinteressada e, sem o saber, no momento oportuno.

Estavam sozinhos. Depois da partida de Sónia para o estrangeiro, que lá está muito bem e se recomenda, pensaram em arranjar um cãozinho daqueles que é só pelo, mas o Zé disse logo:

- Não te metas em trabalhos, Beta. Se tens tanto gosto por cães, entretém-te com os da vizinhança, que bicheza que por aí não falta!

A D. Perpétua, disso sabedora e de muito mais coisas que agora seria fastidioso contar, quis oferecer-lhes um caniche branco, todo ele caracóis de seda, como um anjo de cão. Na verdade, apareceu na igreja a uma missa matinal, ia a meio a homilia, e o padre que, como bom católico, não quis escorraçar o bicho, afinal também criatura de deus, sugeriu a D. Perpétua que cuidasse do pobre animal e o encaminhasse ao seu critério.

- Cabrito, não é costume ser cabrito?

Beta tinha feito a pergunta por uma questão de hábito doméstico e teve de fazer esforço para entender a resposta do marido.

- Ah, claro. Está temperado desde ontem…

Se avaliarmos o comportamento de Beta saberemos que não era aquela a sua preocupação, nem a hora diurna e a conversa ensonada que a traz sem descanso. Mas ficaremos a sabê-lo pelo diálogo que prossegue:

- Tens falado com o Alexandre?

José Cruz esqueceu definitivamente o livro de capas em couro e letras doiradas, desfez as pregas do rosto que lhe ficaram das pequenas mentiras ensaiadas quando a mulher o interrogou sobre a leitura e foi sentar-se a seu lado. Colocou os cotovelos sobre a mesa e olhou-a com ar sério e pesaroso.

- Falei, sim, sexta-feira.

E mais nada se ouviu durante intermináveis segundos. Horas, foi o que pareceram.

- E…

- Tu não sabes metade da minha vida…

- Se não me contares…

- Não sei se sei contar. Ser bancário é vida que muitos ambicionam. Emprego seguro e limpo, leve e bem remunerado… Mentira!

O dia, olhado do ponto de vista católico é de ressurreição, de aleluia. Porventura estamos crentes que será também um dia assim para este casal amargurado e supostamente morto há muito mais de três dias.

José Cruz prosseguiu:

- Todos os dias chovem normas e circulares com tretas dos que estão lá em cima e só vêem números e lucros, sempre a multiplicar, sempre a multiplicar. Há dias tive de enfrentar um cliente que pediu um empréstimo para investimento. Chegou indignado, com uma carta do banco na mão, parecia que me queria comer. É um tipo ponderado e bom cliente.

O cliente tinha recebido uma carta, endereçada pelos serviços financeiros do banco, dizendo que por causa do artigo tal, da norma não sei quê, o empréstimo tinha sido cancelado. Primeiro estava tudo bem, o gerente chegou a aconselhá-lo a dar início às obras e agora voltou tudo à estaca zero. E quem leva com isto em cima? O Zé, pois claro! Noutro tempo pediam dez e levavam vinte, agora que as vacas emagreceram falam de créditos mal parados e demais entraves que sempre existiram mas só agora são argumento.

- Mas onde é que isto vai chegar?! Já não bastavam amigos e clientes antigos se verem obrigados a entregarem as casas porque o desemprego lhes bateu à porta e a isso recorreram para não morrer de fome e aqueles a quem não é concedido crédito por evidente endividamento e saldo mais que negativo!

Agora José Cruz tinha o rosto fechado e as rugas de há pouco voltaram a sulcar-lhe a testa.

Vinham-lhe à memória as ofertas de créditos contaminados, produtos financeiros bonificados de duvidosa rendibilidade que o capital financeiro promove para se abastecer de mais-valias especulativas, sem correspondência com a respectiva produção de bens.

- E o pior disto tudo é que a muitos deles fui eu que em tempos lhes sugeri e até insisti para que contraíssem empréstimos, que eram só facilidades, pressionado pelos objectivos, sempre os objectivos!

Beta, que há muito não tinha conversas deste género, com o marido ou com quem quer que fosse, não sabia o que responder. Desde a sua saída da fábrica que as suas conversas não passam da lana caprina, se nos é autorizada a aproximação ao seu antigo ofício. Ela é mais de vizinhas e vizinhos, de coisas e loisas, de voltas e reviravoltas como um croché interminável e de duvidosa utilidade.

- Sabes que só somos santos quando morremos. Nessa altura sim, “era uma santa criatura”. Enquanto cá andamos é malhar para não sermos anjinhos.

Assim rematou José Cruz para despertar a mulher que parecia ter ficado assolapada com as histórias do banco.

É incrível como estes prédios altos e simétricos, de quadrículas no lugar de janelas, se fecham por si e ao fechar-se encerram quem lá vive dentro e dentro de si. Este pequeno diálogo, por pequeno que fosse, teve sabor a milagre. Nunca entre paredes tinham experimentado, o Zé e a Beta, uma tão completa conversa, com palavras e frases até ao fim, sem discussão ou discórdia.

Na rua não se ouvia vivalma. Era um feriado a sério. O pouco comércio que existe, caso não fosse feriado, não acrescentaria grande coisa. Há menos de uma semana a papelaria abriu falência e a retrosaria já não abre portas vai para três meses. Não fosse outro o esmagamento de que falamos e só de olharmos para aqueles estabelecimentos encerrados, com correspondência antiga no interior junto à porta, nos pareceriam eles vítimas do silêncio da rua e do peso dos andares encaixotados. Sobrevivem os cafés e o minimercado para sedes e fomes de ocasião.

Seria no entanto incompleto este relato, e não dizemos injusto porque de justiça nada tem o que incompletamente descrevemos, também fechou a única agência bancária sediada no bairro. Constatámo-lo com um certo regozijo interior, difícil de explicar por palavras. E quando assim é, a memória tem uma borracha especial que apaga tudo o que não queremos ou não desejamos lembrar. Por outro lado, todos sabemos, e este que a história vos conta não é excepção, que todo o comércio que fecha ou muda de lugar, além da saudade ou do alívio, conforme os casos, sempre deixa vestígios da sua passagem. Assim, a papelaria deixou papéis, uma espécie de confettis de furação de folhas, raias de papel triturado, o que, até para um leigo, não deixava dúvidas sobre o falido inclino. A retrosaria, para além de alguns pequenos botões de camisa, deixou rasto de fragmentos de gregas, nastros fitas de gorgorão esgarçados sem qualquer préstimo, prova esta também evidente de quem por ali passou. Ora a agência bancária não deixou qualquer vestígio do seu comércio: por mais que olhássemos, não vimos moeda, cêntimo que fosse, ou nota amarrotada por engano confundida com papel vulgar. Só isto prova a nossa distração e o desdém por este comércio que tudo aproveita, que tudo oculta, que tudo varre à sua volta.

No bairro ninguém compra nada de vulto. Para isso estão as grandes superfícies que cercam a cidade e as vontades dos clientes.

Não é o caso do cabrito que, comido a dois, estava uma delícia. Este veio da aldeia, que a terra ainda tem destes mimos. Estava de comer e não diremos chorar por mais por não valer a pena. Sobrou ainda para o jantar. Por isso estava e estará de comer e chupar os dedos, que a intimidade permite e não constrange.

A tarde do feriado de Páscoa é ainda mais pesada no bairro. Os vizinhos não se afoitam a saídas vespertinas e os que tiveram oportunidade saíram bem cedo e só voltarão quando o sol arrefecer atrás da serra. Os que ficaram não dizem nada: escutam às paredes por divertimento e espreitam pelos orifícios das persianas. Já o tínhamos dito, a vida no bairro é o que se ouve e o que se vê e quase nunca o que realmente é. Por isso a Beta e o Zé repousam ainda consolados à mesa do almoço.

- Esqueci-me de fazer uma sobremesa, Zé…

Que interesse tinha tal remate, ainda que o dia solene o sugerisse.

- Sobremesa? Não me cabe nem o palito nos dentes!

Estavam felizes. Conversaram. Beta soube das intrincadas vidas no banco que apoquentam o marido e tinha-lhe, sem o dizer, perdoado as más-caras, o almoço correu de feição, pese o facto de a Sónia estar tão longe, de modo que até faria amor com ele, caso lhe solicitasse e não fizesse mal à digestão como ouvira uma vez dizer a D. Perpétua, que disso sabe ou diz saber, vá-se lá saber como, se de homem não conhece senão o padre Alberto.

As sentenças e pequenos ódios de estimação da vizinha, de quem, aparentemente, quase todos desdenhavam, acabavam sempre por fazer mossa e moer a rosca dos condóminos que se dedicam ao ofício de falar por falar.

O vizinho do rés-do-chão direito, para ali mudado há pouco tempo, não tem nome ainda. Por isso é tratado por “aleijadinho”. A criatura teve um acidente de trabalho grave e ficou ligado a uma cadeira de rodas. Mudou-se para este rés-do-chão por oportunidade de assim poder ter maior mobilidade, juntamente com a mulher e duas filhas menores.

- Como é que o homem, naquele estado se impõe como pai, se nem consegue pôr-se de pé? - Zumbe Perpétua. – E a vida dele com a mulher, uma tristeza… - Perpétua, corrompe desta forma a massa cinzenta de quem se dispõe a ouvi-la e depois retira-se fungando e, num tom de voz de religiosidade latente, remata: - Coitado!

Beta lembrou-se desta recente ladainha e ficou sem vontade daquilo que ainda há pouco tanto parecia desejar.

Assim se mitigam os sentimentos nestas sucessivas ilhas. Uma solidão colectiva, cuja canseira diária, a luta pelo futuro, passa quase sempre pelo pagamento daquele seu quinhão a tempo de o poderem chamar realmente seu.

Continua