O início dos anos 80, do século XX, deu à democracia portuguesa nova roupagem e linguagem a que já nos tínhamos desabituado há meia dúzia de anos. Era o tempo e a ânsia de sermos Europa, mesmo que para tanto deixássemos de ser Portugal.
Os olhares matreiros e de soslaio, o dinheiro a rodos que pingava de todos os lados e o neoespertismo nacional, preenchiam notícias e ganhavam terreno nas ruas, nas empresas e no aparelho de estado. Nisso as autarquias não fugiam à regra. Fundadas em legislação democrática, cedo se tornaram verdadeiros polos de desenvolvimento, geradoras de crescimento e progresso em benefício das populações, cujas carências, especialmente no interior, obrigavam a um esforço empenhado e colectivo dos cidadãos e autarcas. Outras, porém, mereciam outro tipo de atenções.
Os PGU’s começavam a ser aprovados, mas havia, nestas últimas, quando não resistência, pelo menos a atitude displicente que tanto podia ignorá-los, como alterá-los dum dia para o outro.
O mais importante de tudo era o “negócio”, a oportunidade de compra e venda de terrenos; de locais para demolir, alterar, construir de novo, o tempo daqueles que, olhando aos próprios bolsos mais que às almas das freguesias, compravam quintas e quintinhas, cobiçavam locais de alto rendimento em zonas urbanas. Para tanto era necessário um amigo na autarquia ou que sobre ela tivesse influência decisiva.
Da noite para o dia algum solar desabava a camartelo, algum prédio crescia como se fosse elástico, algumas árvores pareciam ter sido engolidas pela terra mãe, não fossem os vestígios de serrote. Não tardaria, muito mais rápido do que seria de esperar, que os altos prédios, como grades de cerveja empilhadas, não se mostrassem como novos habitantes do espaço, arrogantes e iguais, iguais e arrogantes, sem qualquer parentesco com o que ali sempre existira, de tudo fazendo igual, igual, igual e incaracterístico.
Era o tempo dos tijolos e das vigas de betão armado, para os quais não há ciência humana, lei ou limite, estética ou cércea.
Por esta altura dava José Cruz os primeiros passos na banca. Um rapaz vivaço dentro do seu fato completo. Atendia ao balcão com simpatia a todos por igual, que assim mandavam as regras impostas pela gerências e os princípios que trouxera da aldeia. Depressa passou a efectivo. Na fila para o gabinete do gerente eram quase sempre as mesmas respeitadas criaturas. Iam pedir dinheiro vivo. O progresso exigia uma rua seguida de outra rua e logo um bairro e outro bairro, aqui, ali, uma cidade em cima doutra cidade. José Cruz via esta gente entrar e sair vermelha de sorrir, estalando ruidosamente as mãos após a assinatura dos contratos de novo empréstimo, e presumia que a felicidade dos clientes era também a sua, a da sua família, não tardaria muito.
Na Câmara Municipal pontificava uma qualquer eminência parda, de nome Valência, que engenhava, cortava, abria e dava azo a esta correria desenfreada.
- Falou com o Valência sobre aquilo que lhe pedi?
- Ele não fica prejudicado…
- Ah, claro que não! Ele sabe que pode contar com a instituição.
- As coisas são assim mesmo: onde há cinco pisos, há seis…
- Ou sete!
Agora não podiam deixar de soltar uma gargalhada cúmplice, agarrados de mão direita, cliente e responsável do banco. Pela algazarra que invariavelmente acompanhava a despedida, todos os funcionários olhavam com discrição, procurando não melindrar os clientes do balcão, para a porta do gabinete do gerente.
Sendo nesta altura frequentes este tipo de atendimentos vip, a verdade é que todos aqueles homens se assemelhavam: vermelhuscos de carnes, caras de lua cheia, barrigas alarves e linguagem que soava a falsete, para além dos escandalosos pontapés na gramática.
Primeiro os pedreiros e serventes, depois carpinteiros e armadores de ferro, todos vão subindo à medida que os edifícios tomam altura. A empreitada é de sol a sol; de sol a sol os vemos como artífices da obra nova. Algum tempo após o edifício fecha-se como um casulo. Tem então a forma definitiva de prédio urbano e gigantesco. É o tempo de estucadores, electricistas e pintores darem o seu melhor em igual empreitada oculta e silenciosa. Não tardará que a cidade ostente chamativos cartazes anunciando o empreendimento aos melhores preços por fracção e condições extraordinárias de financiamento.
E aí estão os novos gigantes, talvez como aqueles de que fala o livro que José Cruz poderia ter lido num Domingo de Páscoa ocioso, não fosse a sua falta de hábitos de leitura, a ocupação dos seus sentidos com outros monstros invisíveis, que povoam as entrelinhas das circulares do banco e, no melhor sentido, a proveitosa conversa com Beta.
Quando pela manhã o sol bate na fachada dos recém-criados mordomos da cidade, a luminosidade das suas cores berrantes ferem de morte o nosso olhar. À primeira vista dá a sensação que Deus enlouqueceu e naquele mesmo instante os pintou de cores diabólicas como castigo por todos os pecados que por dentro contraíram, desde o mais fundo alicerce até à última telha colocada.
Serão em breve habitados por todos os querem casar, experimentar o que agora é mais moderno ou simplesmente mudar de ares, que a banca facilita e até incentiva. Por enquanto, estes que pela demanda de casa nova se acercam dos escritórios da especialidade, estão todos em pé de igualdade quer para a banca, quer para os empreiteiros e vendedores. Tarde de mais saberão que assim não é. Mas isso são contas de outro rosário. Esse tempo virá depois.
- É só facilidades…
- É dinheiro a girar, meu amigo, é dinheiro a girar…
Era um diálogo avulso ouvido por José Cruz ao balcão do banco.
- E por que não eu entrar num negócio destes? – Pensou –.
Não havia mãos a medir para tanto cliente ávido de um andar, pequeno que fosse, e dele pudesse dizer com orgulho, “é meu”. É certo que muitos se ficavam pela satisfação de dúvidas e logo desistiam para não esticarem demasiado a corda dos seus proventos. Agradeciam as explicações, levavam uns prospectos para lerem em família e por aí ficavam.
Mas também havia os que se aventuravam sem cuidar de fazer contas, tal era o entusiasmo criado pela propaganda da banca, nos cartazes que cercavam a cidade e o boca-a-boca constante sobre tais novidades. A verdade é que ninguém queria ficar para trás.
A oposição na autarquia marcava agenda com inúmeras ilegalidades e compadrios. Falava até do endividamento e desnorte, que a uns beneficiava, a outros iludia e à grande maioria prejudicava.
O entendimento da maioria, porém, era outro bem diferente.
Segundo estes, o progresso era evidente, os cidadãos respiravam sorrisos de contentamento e, como ainda há pouco se ouvia no banco, o dinheiro gira, gira, gira.
E é tanto assim, que a maioria dos eleitores voltou a eleger aqueles que tanto bem-estar proporcionavam. Eis como José Cruz raciocinava.
Os relatórios municipais transbordavam de números, cifras e demais arengas, que quantificavam a grandeza e o regozijo de um mandato de sucesso. A maior parte das vezes era Valência que elaborava os dossiês e os apresentava como fabulosos documentos de prova da excelente gestão autárquica. Valência procedia como os generais que após a batalha, tendo garantido o seu quinhão nos despojos, contam as espingardas e desdenham dos soldados que as empunharam, para anunciarem vitória sobre o inimigo. A maioria e o presidente exorbitavam com tal progresso, tanto empreendimento. Depois de tanta promessa podiam dizer que a obra aí estava. Evidentemente uma grande obra.
O órgão deliberativo assim o confirmou. A maioria e todos os que de juntas de freguesia eram presidentes se levantaram, e já não era sem tempo, que os rabos doíam de tanto assento, dando com a sua levantadura aval à nobre causa. Nada que não fosse esperado de tão fidedigna gente.
continua