Há algum tempo que circulam no bairro rumores acerca de um infiel relacionamento de Beta. Por ser como é, um boato e nada mais que isso, não sabemos também quem o inventou e o colocou para fora das persianas fechadas quase sempre, dizem, por causa dos insectos e poeiras e jamais pelo que de dentro possa contaminar a rua. O que sabemos e se o não soubéssemos já teríamos, pelo menos, algumas suspeitas, é quem mais propaga o dito, quem mais se empenha em difundir a novidade, seja ela verdadeira ou falsa, para o efeito não é isso que conta.
- Isto não é de agora: há muito tempo que dou razão das visitinhas fora de horas…
Perpétua, mulher sem mácula, religiosa até mais não poder, assumia desta forma a quem com ela se cruzasse o desabafo em jeito de limpeza moral e defesa de católicos costumes.
É claro que no bairro, mesmo que o neguem, já toda a gente sabe do enredo, mesmo aqueles que sabem mais ou menos de quem se trata. Mais: toda a gente associa o imbróglio a Alexandre Monteiro, afinal a única visita do casal após a partida de Sónia para França.
É desta forma, ao mesmo tempo inverosímil e, por esse exacto motivo, mais dolorosa ainda, que o escândalo chega aos ouvidos de José Cruz.
O próprio amigo lhe deu conta. Esperou-o à tardinha, à saída do banco e desabafou tim-tim por tim-tim tudo o que nesse dia ouvira.
- Sabes que falo com muita gente, Zé. Fiquei para morrer.
- Entre nós nunca houve segredos, não era agora…
- Dizem que a beata lá do teu prédio garante ser eu, mas eu juro que nunca toquei na Beta com um só dedo que fosse. Era o que faltava!
- Eu sei, Alexandre, eu sei… Toda a gente menos tu.
- Assim também não, Zé! Estás a admitir que há alguém e isso não é justo. Por que não falas com a Beta?
A cabeça de José Cruz não era agora recheada por um cérebro ordenado, com lógica ou método adequado para uma reflexão ou juízo equilibrados.
Além disso, o que por dentro o corpo contém tinha desmoronado. Os órgãos pareciam não estar no seu lugar e ao mesmo tempo todo ele se transformava num objecto oco, sem acção e sem pensamentos, vazio como nunca antes tinha acontecido, excepto quando conheceu Beta, mas nessa ocasião tudo voltou ao lugar, tudo se recompôs com o sim que ela lhe deu e até lhe pareceu com um vigor que antes não tinha. Agora não. A cabeça não pensava, as pernas entorpeciam como se estivessem dormentes e o peito ardia num fogo lento, doentio, fátuo.
Alexandre a tudo assistia em silêncio. Um silêncio presente, solidário. Desde o início da conversa que tinha a mão no ombro do amigo. Fazia-o para que as suas palavras tivessem o peso da amizade, para que sentisse o pulsar do seu coração verdadeiro.
José Cruz distendeu os ombros e Alexandre, reparando então onde a mão lhe tinha ficado, retirou-a, apertou ligeiramente o braço do amigo em sinal de ânimo:
- Coragem, pá!
Ficaram mudos frente a frente durante algum tempo, até que Alexandre, com o propósito de descomprimir, abriu o rosto e fez uma pergunta aparentemente disparatada:
- Alguma vez leste o D. Quixote de la Mancha, Zé?
Vezes sem conta olhou já para o livro na estante da sala do amigo e daí o pé de conversa.
José Cruz estremeceu. Aquela pergunta transportou-o para a vida. De repente sucederam-se imagens e memórias de acontecimentos até agora íntimos que o conduziam a casa onde agora gostaria de estar.
- Que pergunta é essa?
- Nada, leste ou não?
Vendo bem, Alexandre estava agora mais saudável, na tentativa de contagiar o parceiro.
José Cruz ainda hesitou na resposta a dar porque ia mentir, sabemo-lo nós, mas acabou por sacudir-se, levantou o queixo e, com ar displicente, murmurou:
- Já li, sim, há muito tempo. Já não me lembro…
- Pois se te lembrasses saberias que esse tal D. Quixote usava um elmo que afinal era um alguidar e toda agente, digamos assim, troçava pela figura que fazia.
-Onde é que queres chegar? Não estou a perceber nada!
- Calma. O que acontece é que, a propósito, D. Quixote no seu modo de nobre que só ele achava ser, digamos assim, disse uma frase que te pode ser útil, D. Quixote aparte. Disse ele: A quem o contrário disser farei conhecer que mente, se for cavaleiro, e se escudeiro, que mente mil vezes.
José Cruz fez um sorriso de simulada compreensão, abraçou Alexandre como se não o tivesse visto ontem, nem anteontem, nem em todos os outros dias que a estes precederam.
Era sobretudo um abraço em que procurava selar a amizade e, neste instante, a amargura de ambos; conter o dique de remorsos, raivas e outros sentimentos que não sabia muito bem explicar e lhe apertavam o peito como lanças que picam, ferem e, no entanto, não matam para que o sofrimento seja ainda mais profundo.
- Vou andando.
- Vai. Tem presença de espírito. Dá notícias.
continua