segunda-feira, 31 de março de 2014

POEMA RECORRENTE SOBRE AS CASAS


As casas são casas: intimidade, acomodação.
Casas e mais casas e eu vivo em todas elas
como, durmo, dou serventia às janelas
e vou pensando no problema da habitação.

As casas são mundos, são para mim o mundo
onde, mesmo sem dormir, vou sonhando a vida,
os que vão chegando e os que estão de partida
e esse é outro assunto; é o problema de fundo.

As casas ficam, sobreviventes de pedra e cal
sem sonhos e sem preocupações de maior.
Mas comigo é bem diferente e para pior…
E esse é o problema; é aí que está o mal.

sábado, 29 de março de 2014

ÁRVORE (Sobre uma fotografia)



À medida que o tempo corre
flores e frutos vêm e vão,
dependendo da estação,
 só a sombra é que não morre.

quinta-feira, 27 de março de 2014

SINOPSE


(Notas para a descodificação política e outras novidades da mentira de lei)

Os ministros embebedam-se com a própria incompetência,
vomitam decretos-lei com borras da adega de trinta e três.
Aprendizes sábios do virtuoso beirão, por equivalência,
preparam-se para abrir a nacional taberna pela segunda vez.

Os ministros dão públicos ares duma alucinação estranha
e pronunciam cifradas línguas bárbaras neoliberais:
comportam-se como súbditos da estrangeira Alemanha
e, em vez da fala humana, grunhem como os animais.

Não queremos a sua morte, lutamos pelo degredo eterno,
para que vão purgar tais vícios nas labaredas do inferno.

terça-feira, 25 de março de 2014

DIVINOS ENLEIOS


Ah, que sorte: hoje há deuses lá em cima
sedentos de versos, dormentes de sono!
Vou fazer-lhes pontaria com rima
e acertar-lhes em cheio no buraco do ozono.

Podia ser em lugar alabastrino, como a testa,
mas é pecado, além da enviesada geografia:
não os quero mortos nem o fim da festa,
quero apenas treinar a pontaria.

Qualquer deus é grande, maior que tudo,
de forma que vivem longe em lugar além…
A seu modo poliglotas, estilo surdo-mudo,
e assim ditam o pecado, o mal e o bem.

A seus ministros é pesado o fardo alombado:
abençoam, excomungam, conforme as escrituras,
alteram as combinas, corrigem o pecado
e determinam a morte e as vidas futuras.

Eu vou falar com um deus um dia destes
e dizer-lhe cara-a-cara, muito abertamente:
“mas que mundo é este que concebestes
onde só vós viveis sem leis eternamente?”

domingo, 23 de março de 2014

AS FEIRAS


Chorei por mil tambores.
Todos me pareciam magníficos.
Com qualquer um faria marchar o soldadinho de chumbo,
escondido algures, mas com certeza dentro de mim.
Talvez tenha conseguido um ou dois, talvez três.
Normalmente ofereciam-me pandeiretas,
que eram mais baratas. Eu pensava apenas que eram de menina
e por isso as rejeitava.
Se fosse mosca e presenciasse aqueles despiques,
Saint-Exupéry acharia, certamente, cativantes os meus apelos,
ao contrário do meu pai,
que não lhes encontrava muita graça.
Mas os feirantes adoravam-me e até me faziam festas,
mesmo que não me conhecessem de parte alguma.
As feiras, mais do que as simples festas,
tinham a minha preferência.
As festas aborreciam, prolongavam-se demasiado
e tinham poucos motivos de interesse para a criançada.
Por outro lado, as feiras,
para além do ar de festa que eu lhes via nos balões,
nas luzes e cores e na gente sempre em movimento,
tinham o encanto do regalo que eu podia levar para casa,
continuando a divertir-me
e a atormentar os ouvidos de todos,
até à próxima. 

sexta-feira, 21 de março de 2014

A GUERRA


Havia notícias duma guerra longínqua
e, ao mesmo tempo, presente em todos os gestos e falas.
Mais gestos do que falas.
Os nossos eram os bons e acenavam com um adeus sombrio
quando embarcavam em Lisboa.
Os que ficavam no cais imitavam-nos,
mas com lenços e lágrimas, num mesmo adeus sombrio.
Não se sabia se o inimigo também embarcava desta forma
e se chorava, se tinha um cais,
família e despedidas com lenços, lágrimas e um adeus sombrio.
Os nossos não morriam nunca,
como nos filmes; desejavam prosperidades todos os natais
e escreviam aerogramas para as madrinhas de guerra,
prometendo regressar mais saudáveis do que nunca.
Que soubéssemos, como disse,
os nossos eram os bons
e isso transformava-nos em inocentes querubins de alma branca
e olhar atónito, sem lágrimas que não fossem de imitação.

quarta-feira, 19 de março de 2014

PRIMAVERA


A Primavera tem este condão
de me seduzir qual andorinha,
vendo os teus decotes já de Verão
no corpo frágil em pele de galinha…

Sei mais: o pólen perfumado
das flores, o tímido sol refulgente
e o teimoso melro, inconformado,
imitando os sons de toda a gente.

segunda-feira, 17 de março de 2014

FOTOSSÍNTESE


Continua radioso este sol,
apesar de tanto alimentar o meu olhar.
Não se lhe notam no rosto rugas ou ocasos.
Apetecia-me dizer que só a mim pertence,
mas sei de outros que o partilham com a mesma devoção.
O que mais me fascina é a sua luminosidade,
e é caso para dizer que nada
o faz de forma tão brilhante…
A demonstração está no oxigénio de uma vida inteira.
Uma prova de vida.


sábado, 15 de março de 2014

MEMÓRIA DOS CHEIROS


Não havia cheiros como os da casa da minha avó.
Ah, se eu pudesse descrevê-los,
reproduzi-los com palavras perfumadas!
Subia as escadas
com aromas carregados de maresias recentes,
misturados com o perfume do irrepreensível encerado,
e sabia, pela corrente de ar vinda da cozinha,
que uma grande fatia de pão caseiro,
com queijo de cabra, me estaria reservada para a merenda.
Cada recanto tinha o seu próprio odor,
por isso reconhecia de olhos fechados
a geografia de toda a casa
e do meloso aroma das mãos que me afagavam o rosto,
dos lábios que me beijavam,
do regaço que me acolhia como ninguém.

quinta-feira, 13 de março de 2014

O CACTO E O TECTO


Para ser correcto,
foi o cacto
que tombou o tecto
é um facto.

Cansou-se do porte erecto
o cacto defunto
e foi directo
ao tecto ao assunto

Uma pena. O cacto tinha tão bom aspecto…

terça-feira, 11 de março de 2014

POR GRAÇA


Ponho um pouco de graça
em tudo o que improviso:
às vezes a coisa passa,
outras nem por isso.

Mas tem ainda mais graça
quando a graça, em suma,
em vez de graça, embaça,
e não tem graça nenhuma.

Na verdade, o que desejo,
o que quero e desafio
é morder e dar um beijo
sem cuidar se choro ou rio.

Olha que graça isso tem,
morder e dar um beijo!
não será tal como quem
mata o próprio desejo?

Pode ser mas não é tal
e pode bem não ser assim:
morrer num beijo não é mal;
mal é morrer em mim.

segunda-feira, 10 de março de 2014

AMERICANOS (Um quase plágio de Bertold Brecht)


Quem dizimou os Apaches e em Siting Bull
todos os índios da América?
Os livros escolares americanos dizem que os búfalos se extinguiram
e, por arrastamento, pereceram os que deles dependiam.
Quem escravizou os negros de África
e quem contratou as naus que os resgataram?
Acaso há um estreito de Bering no Atlântico?
Quem lucrou em Chicago com a proibição do álcool
e com armas semelhantes matou os seus filhos
por suspeita de contaminação bolchevique?
Guantanamo é território de Cuba,
mas são cubanos todos os seus habitantes?
Quem invadiu Granada? E quem sabe o local exacto
em que se despenhou o avião que transportava Omar Torrijos?
Em onze de Setembro de 1973
Allende foi assassinado no Chile.
Pinochet o ditador de serviço.
Sozinho? Quem estava a seu lado?
Os marines dos EUA jogavam a roleta russa
em bares improvisados nos bairros pobres de Saigão e morriam
traiçoeiramente baleados.
E quem mais morreu, em sua casa, queimado com napalm no Vietname?
Quem cozinhou a guerra do Golfo
e quem comeu a fava?
Por que sobrevoaram Nova Iorque os aviões terroristas?
Por que são de paz os B52 que sobrevoam Cabul?
Quem atirou a primeira pedra e quem se junta ao apedrejamento?

Tantas histórias,
quantas perguntas.

sábado, 8 de março de 2014

OS NORTE-AMERICANOS (Rhapsody para os norte-americanos)


Servem para tudo os americanos do norte.
No sul, chamam-lhes gringos e ianquis, que significa canalha,
lixo, espécie indesejada ou filhos de Satanás.
No mínimo, significa coisa ruim.
Não são tal. São apenas americanos do norte, como são
os ursos, os búfalos e o Kid Carson, que afinal não lhes sobreviveu.
Servem para tudo os americanos do norte.
No seu próprio lugar inventaram o wild west e Hollywood, mais tarde,
para contaminar o resto do mundo
com o seu modo de viver e o seu Kiss Me Deadly.
E, apesar de tudo, são baleados a milhares de quilómetros,
na testa, no coração e, quantas vezes no rabo,
por armas que fabricaram em sua casa.
Servem para tudo os americanos do norte.
Acham o fast-food uma ideia gastronómica genial,
a obesidade uma consequência do progresso económico
e as epidemias fruto da má vizinhança.

Servem para tudo os americanos do norte.

sexta-feira, 7 de março de 2014

OS NORTE-AMERICANOS (Rhapsody para George Gershwin)


Al Capone era um tipo simpático
(tendo mesmo em conta a cicatriz)
se comparado com McCarthy
e tu, George, deste-lhes música sem o saberes.
Hoje, os americanos dizem que são águas passadas.
Na Europa, dizem o mesmo sobre a inquisição.
É gente que se satisfaz com o que tem
e tem mais do que necessita para se satisfazer.

Deus morreu em 1929 e foi crucificado
em Wall Street. De então para cá,
os norte-americanos mitigam a fé com anjos órfãos
e fazem milagres no cinema.
(Oh George, volta a compor Rhapsody In Blue
e reabilita todos os pretos da América!)

E, já agora, embarguem o Canadá,
eles parecem sorrir de felicidade
quando vos espreitam lá de cima,
como ursos polares em jeito de provocação
e deixem Cuba viver em paz.
Metam-se com gente do vosso tamanho!

Ah, e deixem, duma vez por todas,
de me fazer crer que o jazz é uma prostituta bêbeda
a banhos no Mississipi.

quarta-feira, 5 de março de 2014

OS NORTE-AMERICANOS (Rhapsody para Allen Ginsberg)



Escrevem versos brancos como quem vai à Lua
e vão à Lua cavar poemas ainda mais brancos.
Para o bem e para o mal, conhecem o mundo
até às Caraíbas e jamais o meu vizinho carpinteiro,
de nome Joaquim, que jura ter feito
um guarda-fatos em mogno para um milionário californiano.
De sonetos (incluindo ingleses) nunca ouviram falar;
sabem de sondagens, tácticas militares e de napalm,
de multinacionais e de petróleo.
Não são nunca culpados de coisa alguma:
chatearam-se em Pearl Harbour e vingaram-se em Hiroxima.
O Mayflower não levou todos os bandidos e prostitutas
europeus. Prosperaram depois. E isso vê-se
nas eleições políticas que realizam,
nas guerras que exportam, nas revoluções que inventam
e na leviandade com que dizem my god.

É verdade que há os Óscares, os Nobel
e as medalhas olímpicas, mas a verdadeira história
norte-americana é a de Bufalo Bill.
As fontes não revelam quantos milhões não têm abrigo
e não há notícia de Apaches nem de Cherokees
(eu sei, Allen, de Sacco e Vanzetti também não)
mortos em nome do american way of life.
Borrados de medo em Hanoi, não conheceram Jonh Reed, nem Gus Hall,
de quem muito aprenderiam sobre os outros.
Preferiram embebedar-se em Saigão, vomitar
no Mar da China a última ração de combate
e lamber o chão em Woodstock.
Ninguém como os norte-americanos
soube dignificar de forma tão eloquente
o nome da sua moeda fiduciária,
dos seus heróis de banda-desenhada
e das suas histéricas lágrimas em Manhattan.

terça-feira, 4 de março de 2014

COMO CÃO

Como te invejo amigo cão,
o teu sol e mesmo o teu osso;
não a coleira do pescoço;
                                               a condição.

Como te invejo o faro, irmão!
Cheirar até o bafo de deus,
seres tu por mim alguém e eu
                                               o cão.

Como te invejo, meu ciúme é vasto:
o amor que fazes à minha frente,
uivar, ganir como um demente
                                                e casto.
                                  
Como te invejo e te gabo,
                                   como os que, não sendo cão,
                                   pedem guloseimas e dão
                                                ao rabo.

                                   Como te invejo o dobrar do sono,
ladrar a quem me apetecer
e, se for preciso, morder
                                               o dono.





domingo, 2 de março de 2014

FÁBULA DO CÃO E DO LOBO


Sabemo-lo, conhecendo a natureza,
mas não será demais dizer de novo:
ao eleger entre predador e presa,
não é por uivar que o cão é lobo.

Porém, vista tese por outro lado,
temos que, pela mesmíssima razão,
por mais que o lobo dê ao rabo,
não é, nunca será um cão.

Lobo é lobo, cão é cão
e ambos, macacos de imitação.