sábado, 31 de agosto de 2019

O RETRATO


Era um daqueles miúdos
pobres, sujos, sisudos,
que se encontram por aí,
à porta de coisa nenhuma,
com fome ou se presuma
porque nos olha e não ri.

Um dos miúdos surreais
expostos nas redes sociais;
seminu, sem eira nem beira,
com o ranho a sair do nariz
(ranho é feio, não se diz…)
brincando junto à lixeira.

Não fosse a nossa virtude
cristã, filantropia e amiúde,
grande peso na consciência,
nem tínhamos dado por ele,
coitado, de seu só tem a pele
a cobrir-lhe a existência.

Figura assim posta a jeito
para um retrato a preceito,
não é miséria, é fantasia;
arte e, bem entendido,
pode até ser promovido
em prémio de fotografia.

O resto é figuração,
falsa fé, desdém, resignação,
demais lutos, manigância…
sentimento que logo se arruma
em lugar discreto e, em suma,
nada que tenha importância.