Primeira publicação de João Corvo em Novo Jornal de Cabo Verde, em 6/2/1975
Em terras de Tabuleiro as coisas não corriam bem… O Rei fazia questão em que a sua corte tomasse as rédeas do país e com ele levasse por diante o famigerado plano do “absoluto silencioso”.
Do outro lado, porém, um grupo cerrado de Peões olhava-o de soslaio, como se lhe quisesse mostrar a sua presença.
Nada no entanto modificava a ideia do Rei, que teimava em avançar no caminho aberto pela sua corte.
A Rainha, dois bispos e um Cavalo serviam-no nas longas avançadas. De jogada em jogada iam deixando marcas do seu cunho.
Aflitos pela loucura do Rei, os Peões apelavam-lhe para que parasse, que os ouvisse, que a derrota estava iminente.
Mas o Rei acoitava-se nas Torres e, brandindo a espada de tábua inoxidável, ameaçava-os com os pântanos que cercavam as terras de Tabuleiro
Os Peões á que não se ficavam. Avançando devagar, cautelosamente, impediam aos poucos a ira do Rei.
Certo dia o Rei acordou com um fabuloso plano em mente (os planos do Rei eram sempre fabulosos): avançaria sobre os Peões inimigos mais destacados, encurralando-os nos sótãos de Tabuleiro e, acompanhado por Peões servidores, apanharia de surpresa as linhas contrárias, pensava, destroçando-as.
No seu dizer, os Peões inimigos avançados “constituíam uma séria ameaça para as terras de Tabuleiro e para as comunidades estrangeiras”…
E assim fez: na manhã seguinte pôs o plano em marcha, infiltrando-se nas brechas deixadas pelos Peões inimigos avançados, sobrepondo-se-lhes, atirando-os para trás.
Má sorte: os Peões servidores nada sabiam de Tabuleiro e avançaram estupidamente às ordens do Rei, agora apoiado por dois opulentos Cavalos.
Facilmente, os Peões que antes olhavam o Rei de soslaio, se infiltraram nas suas fileiras. Todos os dias chegavam notícias de baixas, não só de Peões servidores mas, pouco a pouco, das mais importantes figuras da corte.
O Rei já não dormia. Passava as noites magicando planos (planos fabulosos…) na sua magistral poltrona de suma-pau. Por mais ideias que tivesse não via maneira de se livrar de triste sina.
Consultou sábios e bruxos – os melhores que Tabuleiro tinha – cuidando que o mal passaria com profecias, mezinhas, manipansos e demais ciências ocultas, mas em vão.
Experimentou todos os truques, pensou ainda em soltar os Peões inimigos que encurralara nos sótãos, temendo ser vítima de uma terrível praga rogada pelos ex-Peões. Mas não, nada deu resultado e a soltura dos ex-Peões poderia ser perigosa.
Novamente o sol bateu nos seus olhos vermelhos e abertos. Agora não conseguia mesmo dormir. Pensamentos estranhos assaltavam-no dia e noite, os papéis amontoavam-se na secretária. E um silêncio, um silêncio térreo. Nessa manhã apercebeu-se que estava sozinho. “Nem um solidário Bispo”, pensou. E foi nessa altura que lhe ocorreu a ideia serôdia de se converter ao catolicismo. Assim ficaria preservado dos males do mundo e muito em especial dos Peões contrários que, olhando-o já de frente, avançavam a passo firme. Era tarde.
Uma noite o Rei viu-se cercado por uma multidão de Peões que, numa gargalhada uníssona o fizeram estremecer de pavor.
Correu de sala em sala procurando aqui e ali uma trincheira onde se pudesse acoitar. Nada. Só papéis, papéis e a sua espada de tábua inoxidável. O rosto do Rei era já uma papa meio suor meio pau, que lhe conferia um aspecto angustiante. As mãos encrespavam-se-lhe num gesto de súplica. O Rei estava moribundo. Estrebuchava no chão como um peixe fora de água. O olhar firme dos Peões contrários queimava-lhe os últimos pensamentos. Quedou-se na manhã seguinte com um laivo de cólera nítido entre os dentes e um plano ainda fabuloso por concluir.
O Rei esquecera-se que embora rei, só podia avançar uma sala de cada vez…