Era um homem de saberes distintos.
Moldava versos mentalmente durante algum tempo e depois escrevia-os como se os
soubesse de cor. Fazia-os de memórias antigas. Todas as palavras desenhadas no
papel tinham uma luz ardente. Às vezes sorria-lhes. Por mais singelas,
rebuscadas ou buriladas, o homem parecia conhecê-las a todas como os seus
próprios dedos, mesmo no emaranhado dos versos que guardava secretamente no
cérebro até achar a oportunidade fantástica de lhes poder dar luz.
As palavras. Oh, as palavras, isso é
dizer muito pouco sobre o que o homem derramava no papel… Eram astros, cometas
incandescentes que a sua mão mais ágil ia traduzindo à medida que a memória
ditava. Algumas riscava-as como se quisesse imitar a cauda dum asteróide, a
outras acrescentava-lhes letras com luz ainda mais fogosas e a outras ainda
dava-lhes uma espécie de vida humana: molhava entre os lábios cerrados e a
língua a ponta aguçada do lápis e reescrevia-as ensopadas de saliva, como se
suassem; como se chorassem; como se as benzesse daquela forma pagã e as
soltasse para a vida efémera que é o momento da leitura.
Diariamente – por ser um período de
tempo acessível à nossa compreensão – arriscava um poema; um fio de versos
capazes de entontecer o mais empedernido dos seres. E fazia-o com a serenidade
de sempre: o caudal das palavras percorria toda a folha de papel ao mesmo tempo
que as lágrimas e todas as outras águas levavam à frente o jorro das suas
inquietudes, até à conclusão apoteótica do poema.
As folhas de papel eram como que assoreadas
de todo o pó e de todos os restos de escritos antecedentes e candidamente
expostas à sua inspiração. Assim procedia para que a brancura dos versos não
fosse poluída de matéria inconveniente.
Ao fim de cada jornada, a folha de papel
continuava imaculada, com um novo poema branco e irrepetível derramado, mas em
que apenas ele era capaz de ler todos aqueles versos lácteos e sublimes, que
jamais alguém havia escrito. Ele e todas as crianças de olhos cristalinos como
as suas folhas de papel.