quarta-feira, 30 de junho de 2021

O VERBO SER


Estás convencido de tudo, que conheces tudo;

que sabes até por que tudo é como é.

E afinal erras, enganas-te, tropeças e feres-te

por saberes tudo de toda a gente, tudo de ti.

Enuncias os verbos, conheces de cor os advérbios,

longe de saberes o que está mais perto…

Ainda agora acordaste e já o sono de novo te invade;

ainda agora nasceste, ainda hoje morreste sem dares por isso.

Conheces a migração dos pássaros e a raiz

que prende as árvores à terra pelo mesmo motivo.

É claro que é a vida. Que mais haveria de ser?

Aprendeste o aroma dos frutos, o valor da água,

do sol, da terra. É provável até que saibas o significado do sangue.

Do teu sangue e do outro que corre por aí, avulso e sem nome.

Estás mesmo convencido que és aquela figura

que te mostra o espelho, como ainda ontem aconteceu.

Se não falasses, não te teria reconhecido,

porque ainda falas e falar é o recomeço de tudo.


 

sábado, 26 de junho de 2021

NOTÍCIAS


Há coisas que oiço outras que leio.

São notícias, senhor;

vai longe o tempo em que vinham pelo correio

e tinham sentido, cheiro e até sabor.

 

Hoje, são as notícias que me querem dar,

carregadas de cokies, umas, outras de risco;

todas por medida, para meditar:

que mal fiz eu para merecer isto?!

 

Esperem, aqui há notícia duvidosa

para esclarecer no café, entre outros dramas,

que é sítio de sábios e de gente palavrosa,

a quem nunca disse uma letra dos meus aerogramas.


 

terça-feira, 22 de junho de 2021

QUINTAL


Gostava que a minha casa tivesse um quintal,

um pedaço de terra, já me contentava.

Mas a minha casa tem apenas portas e janelas

para os quintais daqueles que os têm

ou que os deixam estar ali quietos

e nem querem saber da felicidade que é ter um quintal.

Se eu tivesse um quintal mudaria para lá a casa

e passaria a olhar para a casa como um verdadeiro quintal:

talvez assim sossegasse esta ansiedade

e olhasse a casa como coisa que gostasse de ter,

deixando de me sentir amputado dum quintal,

que não saberia cuidar nem para que serviria o musgo

das pedras em cima da minha cama.


 

sexta-feira, 18 de junho de 2021

SEM NOVIDADES


Novidades que aqui se possam anunciar,

nem uma, por rara que pareça ser.

Há uma chuva por aí, que alguns gabam

e outros de fastio se queixam.

O mesmo de sempre.

Vivemos neste intervalo entre o amor e as trovoadas.

O mesmo de sempre.

É aqui que nos sentimos bem; onde coaxamos,

sempre que a água permite

e o amor nos faz tenores em pleno charco. 


 

segunda-feira, 14 de junho de 2021

O MONTADOR


Há quem monte por gosto

e por montar:

não tem sinais no rosto

nem botas de cavalgar.

 

Podendo montar a eito

roda a monta, roda a festa,

sem se dar por satisfeito,

seja qual for a besta.

 

Monta quem bem entender

e, para memória futura,

afinal quem monta a valer

é a própria cavalgadura.

 


 

quinta-feira, 10 de junho de 2021

COCOS E BACOCOS


Ora agora, adeus!

já não há cocos

e quem os tem chama-lhes seus;

restam os bacocos.

 

Os bacocos

em linha

esperam os cocos

no alto da pinha.

 

Olha o coco, diz o bacoco,

parece um novelo.

Disse o bacoco, mas o coco

nem vê-lo.


 

terça-feira, 8 de junho de 2021

A IMPORTÂNCIA DAS PEQUENAS COISAS


A ravina do olhar com lágrimas,

essa mesma, a que permite a queda

do céu carregado de estrelas

sem nunca chegar ao fundo;

a ravina para onde empurro

tudo o que não quero ver ou sentir,

incluindo as lágrimas

e demais subtilezas da alma que há em mim

é onde guardo as pequenas coisas.

 

Há dias salvei de morte certa

o que restava duma folha branca

separada do bloco de apontamentos.

Escrevi um recado breve

e pu-la bem à vista de quem o precisasse.

Foi alvo de todas as atenções

durante o período activo de validade.

Depois afundou-se na ravina

do olhar com lágrimas, essa mesma,

a que permite a queda

do céu carregado de estrelas

sem nunca chegar ao fundo. 


 

sábado, 5 de junho de 2021

INDISPONÍVEL

 


Estou indisponível, hoje estou indisponível:

não subirei ou descerei a rua,

nem tomarei qualquer transporte.

As paredes gritam-me, ferem-me, insultam-me

e a rua tem uma inclinação inacessível.

Não, hoje estou indisponível,

hoje não vou seguir o trilho costumado!

Vou seguir o itinerário do sangue,

vou inquietar-me, armar-me de palavras

até aos dentes e rebelar-me!

 


quinta-feira, 3 de junho de 2021

RETRATO DE POETA



Nunca me fizeram um retrato

de poeta.

Mas fotografaram, pintaram e até esculpiram Pessoa

com o inevitável chapéu de feltro e o par de lunetas

que repartia com todos os heterónimos.

Não tenho um único retrato

de poeta.

Ao contrário de Walt Whitman,

que foi imortalizado em pose de patriarca iluminado,

velho, de barbas esgadanhadas muito além da decência      

da pilosidade poética.

A Baudelaire que era feio, fizeram-no

com certeza por maldade.

Eu é que nunca posei

enquanto poeta,

com a mão apoiando o queixo, como os românticos

ou ambas todo o rosto, como os surrealistas.

Ou será ao contrário?

 

Vá lá, por favor, façam o meu retrato

de poeta,

que não tardam aí poetas do futuro,

desejosos de escrever sobre ele um ou dois versos

dum poema magnífico.