segunda-feira, 30 de outubro de 2017

TEIA SEDUTORA


Quem julgar que apanha
mesa e roupa lavada
não conte com a aranha,
esfomeada.

A teia que a aranha
tece, tece, é um isco
que desenha,
qual ministro.

O que a aranha
se empenha em tecer
é ardil e manha,
manigâncias…
está-lhe no rosto
e bom de ver
que é imposto
pelas circunstâncias.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O ESCARAVELHO



Que há de novo
com o pestilento escaravelho
além do estorvo?

é manhoso e relho
que da família o herda
sabido como um velho

da direita à esquerda
empurra o escaravelho
bolas de merda

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

NATUREZA SOB SUSPEITA


Hoje suspendi o vento por não suportar
a ousadia das suas rajadas. Mandei florir as rosas
e devido à falta de chuva pedi às laranjas
o amadurecimento mais arrastado.
Detesto que o Sol rasgue as nuvens,
não é saudável ferir os pobres cortinados dessa maneira;
o seu ofício é brilhar sem corromper.
Dei ordens para emergirem ervas daninhas,
cogumelos e urtigas, por terem maior garantia de serem biológicos.
Tudo isto foi pensado com a melhor das intenções.

Mas a comunicação social pediu a demissão do ministro da agricultura,
no caso do ministro do ambiente ter atenuantes
ou cumplicidades de força maior a favor da natureza.
Alguma medida teria de ser tomada para marcar a afronta,
a gravidade do momento assim o exigia.
Não sei o que o ministro a despedir irá dizer em sua defesa.
Que poderá ele argumentar sobre assuntos
que só se aprendem quando podemos por as mãos no lume
sem nos queimarmos?

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

FÁBULA



Vai longe o tempo (longa a vida)
em que jogava à bola na rua.

Um dia dei um grande salto
e atirei-a tão longe, tão alto,

que à minha bola perdida,
hoje lhe chamo lua.

sábado, 21 de outubro de 2017

IR COM O VENTO



Ah, sim, eu estou a favor do vento
mas não vou para onde o vento vai:
cada um tem o seu andamento
e não sei se ele me ajuda ou me trai.

Sou eu quem decide largar amarras
ou lançar ancora; não caio no erro
de fazer trinar guitarras
na hora do meu próprio enterro.

Se o vento vai, que vá, é lá com ele,
saberá seguir a (sua) direcção certa.
A mim basta-me senti-lo na pele,
arejar por arejar não me desperta.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

LISTA DE PREFERÊNCIAS DO FARELO




(Glosa do poema de B. Brecht, "Lista de Preferências de Orge")



Estações do ano, as imprevisíveis.
Florestas, as combustíveis.

Fogos, os necessários.
Dementes, os incendiários.

Ministros, os demitidos.
Euros, os subtraídos.

Televisão, a que se enquadra.
Imprensa, a que ladra.

Mentiras, as que vendem.
Verdades, as que mentem.

Dores, as do vizinho.
Festas, as de bom vinho.

Silêncios, os convenientes.
Arguidos, os inocentes.

Manifestações, venham elas.
Bandeiras, tachos e panelas.

Primavera, a de Portugal.
Sol na eira, chuva no nabal.

Democracia, q. b.
Ditadura, logo se vê.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

PRAÇA DAS PALAVRAS



Uma procissão de palavras com maior
ou menor sentido, encharcadas de fé ou fértil imaginação,
caminha com devoção à frente do poema.
Alguma serventia terão. Mas não será por isso
que o céu a todas abrirá os portões de ouro e mogno
- que, sendo o céu o que é, assim deverá ser –
porque agora é tarde e faz tempo que o poema deixou a praça.
Ide, digo-lhes, por hoje é tudo,
amanhã  haverá nova safra e tudo começará de novo.
Cabisbaixas, regressam aos subúrbios da memória.
Oiço-as grazinar à medida que se afastam
porque é com elas que eu também regresso
e ao poema não importa a minha ausência.

domingo, 15 de outubro de 2017

DO USO DAS PALAVRAS



Gostava de saber se os papéis amarrotados
e postos por mim no lixo, cheios de palavras
inúteis, frases quase versos
foram recolhidos por alguém que, reciclando-as,
construiu uma história ou escreveu um poema.
Afinal, as palavras são iguais para todos,
basta arrumá-las na fórmula certa
para serem lidas e se tornarem literatura.
Gostava de saber se os papéis amarrotados
e postos no lixo tiveram mais utilidade
do que tudo o que, até agora, me serviu e publiquei.

Nada disto tem qualquer importância;
e eu lamento que isto não tenha importância nenhuma.


quinta-feira, 12 de outubro de 2017

UM SOL INSTANTE


Quando o sol arrefece,
a modos que entristece
em arrepiante glacê.
Apenas ri quando aquece
ou porque lhe apetece,
vá lá saber-se porquê.

Um ror de tempo enroupado,
sei lá eu em que vergonhas,
já não sei se dormes, se sonhas,
se o céu te traz ocupado
ou ficaste envergonhado
por ter chegado atrasado
à partida das cegonhas.

Este sol habituado
ao palco diurno do fado,
que nem por um dia se acoite,
se bem que triste ou magoado,
e mesmo se estiver cansado
nunca saiba o que é a noite.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

ETIQUETA(S)



Escarafunchar o nariz
com pretexto de asseio
não se aconselha, como quem diz,
é feio.

Com o mesmo dedo ali, além,
apontar a eito
é deselegante, não fica bem
e é mal feito.

Porém, se o gesto for para o céu
muda a opinião:
nem pecador nem ateu,
isso é cristão.

domingo, 8 de outubro de 2017

MANUAL PARA ESPECIALISTAS EM COMUNICAÇÃO


A aparência
será cordata,
fato completo, gravata;
tem mais audiência.

Palavras, as sensatas,
sem mistura:
algo entre a censura
e as alpercatas.

Política,
só a de lei
do governo, do rei
e da encíclica.

De borracha, as balas
são fogo amigo
o resto é contigo,
se não te calas.

E um último pedido:
o chefe é o chefe
enquanto for chefe,
bem entendido.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

ÚLTIMA HORA


Encharcado de notícias, assim estou eu.
Paridas pelo vento, órfãs de pai,
sebentas novidades de simulado museu.

Chapinho sem dizer água vai,
salpico-me de memórias que ninguém leu,
convencido que toda a nódoa d’água sai. 

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

ELEIÇÃO


Carlota era uma mulher feliz
até que um dia, como agora diz,
procurou  taluda na matriz
e decidiu a questão com um xis.

Na verdade saiu-lhe furado
o intento de um bom resultado:
bom foi ele para o sítio errado;
acertou em cheio, mas ao lado…

Hoje grita: que “foi engano,
quis na conversa do fulano”
e agora lhe causa mais dano.

Carlota cuidou ser correcto
mas foi como engolir cianeto;
pior a emenda que o soneto!

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

MANIFESTO


À frente, os da frente com bandeiras e protestos,
os de trás vão em frente com mais bandeiras.
Quando agitam as bandeiras todos protestam,
todos são a voz que exige, o punho que confirma.
A luta é exigente, o frente-a-frente:
à voz de em frente marcha toda a gente
ou há gente que a passo fica para trás?

Vamos em frente, protestos, bandeiras e voz,
todos, a nossa gente é toda a gente:
os que vão à frente e os que dão um passo em frente!