domingo, 17 de novembro de 2013

CONTO DE NATAL


O meu tio Sebastião era uma daquelas figuras omnipresentes, cujo trato afável e bonacheiro
me envolvia numa espécie de almofada de sumaúma e me retirava palavras quase sempre de assentimento involuntário.
Admirava-me. Soube-o mais tarde. Das poucas conversas que estabelecemos, sendo dele o mote, quase não tive tempo para dizer algo coerente quanto desejava dar-lhe conta das minhas inquietações. Mas ele de tudo dizia saber e a sua presença parecia ocupar toda a casa, todos os lugares da casa. Esse era o meu constrangimento, o meu sufoco.
Era, segundo me dizia, admirador de Pessoa, da Mensagem em particular, e publicou sobre o tema duas ou três brochuras, que um dia me ofereceu com dedicatória carinhosa, como era próprio da sua postura tutelar. Afinal, estávamos em 1988 e eu tinha cinco livros de poesia editados. Penso que o meu tio me olhava como continuador de sangue nas artes da escrita… Em certa ocasião, por intermédio de um familiar comum e por altura do Natal, pediu-me que o visitasse com urgência pois iria regressar a Lisboa onde tencionava passar a consoada.
O meu desassossego perante tal convite só terminou já em sua presença, com o cheiro do azeite das filhós a pairar por toda a casa e de frente para uma enorme e confortável lareira de chão e de generosa matéria combustível.
Falou-me então da sua admiração pelos meus trabalhos poéticos, comparou-me a Alda Lara (poetisa que eu desconhecia naquela altura, cuja obra foi editada postumamente, mas que o meu tio terá conhecido nas suas andanças por Angola) e, a tal propósito, deu-me conta “do verdadeiro sentido que se oculta em expressões metafóricas e ambíguas, recursos que só a poesia admite e que só o verdadeiro poeta é capaz de utilizar”. Mais para o fim da conversa, lá veio então o conselho: “Mas tem cuidado, há coisas que não devem ser ditas, basta que se subentendam”.
Julgava eu ter ganho já aquele Natal quando, ao despedirmo-nos, me ofereceu o seu último trabalho em livro acompanhado de um forte abraço e uma nota novinha de cem escudos, desejando-me os maiores êxitos.