O meu tio Sebastião era uma daquelas figuras
omnipresentes, cujo trato afável e bonacheiro
me envolvia numa espécie de almofada de sumaúma e me
retirava palavras quase sempre de assentimento involuntário.
Admirava-me. Soube-o mais tarde. Das poucas conversas que
estabelecemos, sendo dele o mote, quase não tive tempo para dizer algo coerente
quanto desejava dar-lhe conta das minhas inquietações. Mas ele de tudo dizia
saber e a sua presença parecia ocupar toda a casa, todos os lugares da casa.
Esse era o meu constrangimento, o meu sufoco.
Era, segundo me dizia, admirador de Pessoa, da Mensagem
em particular, e publicou sobre o tema duas ou três brochuras, que um dia me
ofereceu com dedicatória carinhosa, como era próprio da sua postura tutelar.
Afinal, estávamos em 1988 e eu tinha cinco livros de poesia editados. Penso que
o meu tio me olhava como continuador de sangue nas artes da escrita… Em certa
ocasião, por intermédio de um familiar comum e por altura do Natal, pediu-me
que o visitasse com urgência pois iria regressar a Lisboa onde tencionava
passar a consoada.
O meu desassossego perante tal convite só terminou já em
sua presença, com o cheiro do azeite das filhós a pairar por toda a casa e de
frente para uma enorme e confortável lareira de chão e de generosa matéria
combustível.
Falou-me então da sua admiração pelos meus trabalhos
poéticos, comparou-me a Alda Lara (poetisa que eu desconhecia naquela altura,
cuja obra foi editada postumamente, mas que o meu tio terá conhecido nas suas
andanças por Angola) e, a tal propósito, deu-me conta “do verdadeiro sentido
que se oculta em expressões metafóricas e ambíguas, recursos que só a poesia
admite e que só o verdadeiro poeta é capaz de utilizar”. Mais para o fim da
conversa, lá veio então o conselho: “Mas tem cuidado, há coisas que não devem
ser ditas, basta que se subentendam”.
Julgava eu ter ganho já aquele Natal quando, ao
despedirmo-nos, me ofereceu o seu último trabalho em livro acompanhado de um
forte abraço e uma nota novinha de cem escudos, desejando-me os maiores êxitos.