A MÃE
O meu avô materno era como um pêndulo, não por ser relojoeiro, mas por se assumir como o umbigo da família. No dia 22 de Junho de 1953, debruçou-me, decidido, sobre a primeira urna que enxerguei, insinuando aos meus trezentos e quarenta e sete dias de natural sobrevivência, não a mim, ser aquela, incontestavelmente morta, a minha única e exequível mãe.
A TI CARLOTA
Contam que a Ti Carlota, fervorosamente católica, subia, solta, há muitos anos, as escadas da muralha (também sua casa), quando tudo ficou repentinamente escuro, e Satanás a esbofeteou violentamente ao ouvir o seu “credo, Jesus Senhor”. Morreu quase centenária e cega com esta recordação latente, quase verdadeira.
A ESCOLA PRIMÁRIA
Aos seis anos levei a primeira palmada sobrenatural às cinco da manhã. Já então tinha passado com o ferro quente pelas ceroulas de dormir ensopadas de mijo até aos joelhos. Creio que ultrapassaram um rosário as ave-marias avulsas que rezei. Depois foi a manhã mais bem-vinda enquanto durou a instrução primária.
MAGIA QUASE
Lembro-me daquelas cabras maltesas pelo abandono, que só por morte a tiro lhes reivindicavam a posse; dos corvos tão aparentemente estúpidos como negros, habitantes perpétuos das ilhas de Cabo Verde dos tempos coloniais. A seca permanente deixava o chão cor de barro e fendido. Por sorte, os bocados de madeira e os restos dos sacos de cimento da construção civil sobravam. Era isso o pasto e o repasto daqueles conformados animais.