quinta-feira, 30 de março de 2017

OLHOS D'ÁGUA



Nos teus olhos posso naufragar
do jeito como os navego;
resistindo sem nunca me afogar,
de vivo olhar, exausto ou cego.

terça-feira, 28 de março de 2017

OLHOS DE VER


Olhas com os olhos cobertos,
como se não quisesses ver,
e não te deixares prender
por quem tem os olhos abertos.

domingo, 26 de março de 2017

OLHOS NOS OLHOS


O mar adormecido, a brisa fina de raspão na pele,
oásis, o manto aveludado dos nimbos, são fantasias,
posso garantir-te agora, olhos nos olhos.

sábado, 25 de março de 2017

POESIA DE LEI



Passo a vida a cumprir leis, estas e não aquelas,
por isso também infrinjo normas e decretos
e regulamentos e mandamentos avulsos,
que terei sempre de observar,
mesmo que nunca os tenha visto mais gordos.
O legislador é como um alfaiate,
que talha e corta o pano conforme o cliente
e põe em prova com a habilidade e a arte dos alfinetes;
como um camponês, que enterra o arado
e rasga a eito a terra a semear o que o tempo lhe permitir,
o que for subsidiado, o que for abençoado.
É o que me dizem. Só não compreendo por que tem de ser
um funcionário com cara de poucos amigos ou
um polícia com mau hálito
a explicarem-me os imbróglios em que me meto, segundo a lei.
Estarei atento ao relatório da medicina legal,
curioso por saber a morte que de direito me cabe,
coisa que ninguém terá obrigação de me explicar,
para não dizer que é inútil insistirem.
Ninguém é obrigado a fazer o impossível.

quinta-feira, 23 de março de 2017

O PÃO NOSSO


Nunca rezávamos para que as sementes germinassem.
Quando muito, balbuciávamos uma ladainha,
uma espécie de suspiro de alívio pelo fim da sementeira
e o profundo anseio de bom proveito.
As sementes fazem-se à terra
porque é essa a sua natureza e não consta que cresçam
melhor com água benta nem torçam por qualquer deus:
crescem por serem sementes e não pedras
e espigam porque as cuidamos dia após dia.
Nunca rezávamos e sempre comíamos pão por pão.

terça-feira, 21 de março de 2017

REGUILA


Cabelo ruivo, sardento;
olho azul, nariz arrebitado
e cara de atrevimento
este pirralho é danado!

E pelo olhar “sabe tudo”
de quem não fez coisa nenhuma,
está na cara do miúdo
que por certo fez alguma.

domingo, 19 de março de 2017

NÃO TENHO NADA PARA DAR



Além do nada que é meu,
tenho o céu e tenho a terra,
tesouros que o mar encerra
e tudo o que o mundo esqueceu.

Não tenho nada para dar,
tampouco o que preciso;
tenho só este sorriso:
dá licença, posso entrar?

sexta-feira, 17 de março de 2017

ECO LÓGICO


A cidade moderna, ecológica por devoção
dá ares de santa reciclada e discurso gratuito
pelas almas, por um mundo limpo, em oração…
a natureza é que não percebe e faz-lhe um manguito.

quarta-feira, 15 de março de 2017

POR GRAÇA


Ponho um pouco de graça
em tudo o que improviso:
às vezes a coisa passa,
outras nem por isso.

Mas tem ainda mais graça
quando a graça, em suma,
em vez de graça, embaça,
e não tem graça nenhuma.

Na verdade, o que desejo,
o que quero e desafio
é morder e dar um beijo
sem cuidar se choro ou rio.

Olha que graça isso tem,
morder e dar um beijo!
não será tal como quem
mata o próprio desejo?

Pode ser mas não é tal
e pode bem não ser assim:
morrer num beijo não é mal;
mal é morrer em mim.

domingo, 12 de março de 2017

CAVALO AO MAR



Cavalgar quanto houvesse, todos os obstáculos:
pedras, dilemas, ondas. Esse seria eu
se o mar se desse, se o mar ouvisse, se o mar sentisse
o sobressalto das marés em que me estendo.


sexta-feira, 10 de março de 2017

OS MAL PASSADOS ANOS


Foi-me o tempo pródigo em desenganos,
(da esperança vã ao engano puro)
numa correria de anos e mais anos
com os olhos sempre postos no futuro.

Tenho agora tantos anos como natais,
o que, a dividir por dois, não é muito.
É como digo: nem menos nem mais,
e ponho já uma pedra neste assunto.

quarta-feira, 8 de março de 2017

POEMA (NÃO) DATADO



Não dato este poema
de Água Derramada
porque não estou lá,
perto de Grândola.

Tampouco de Nova Iorque
porque nunca lá passei,
bem como da Lua,
que vejo sempre daqui.

Não há outra forma,
havendo uma data delas:
tudo e nada,
ganhar tempo e perdê-lo.

Este poema leva
uma data de tempo
em que permaneço
por aqui, no universo.

segunda-feira, 6 de março de 2017

O FIM DO MUNDO



Nem sempre é tudo
quase nunca é estudo
o fim do mundo

o tema é maçudo
velho e rançoso contudo
é um caso bicudo

um dia acaba tudo
o diabo chifrudo
seja cego surdo e mudo

sábado, 4 de março de 2017

AMOR TECNOLÓGICO


Missionário
tecla dez
menu vário
largue o comando
duas três
vá beijando
quatro
voltaremos ao seu contacto.

Para amar
tecla um
na cama
para fingir
que ama
no quarto
tecla dois
sem rede
sem dama
erro quatrocentos e quatro.

Nível de satisfação
tecla cinco
não
tecla três
tentar outra vez
desperdício
tecla sete
reset
tecla dez
delete voltar ao início.

quinta-feira, 2 de março de 2017

ELOGÍO FÚNEBRE



No exacto momento em que se deu
pela sua ausência já não fazia falta.
Era um homem de palavras, e de seu
apenas ecos esquentados da ribalta.

Dizem que arguia contra o medo:
mentia com palavras iguais às verdadeiras,
fazendo da mentira tal segredo,
que as verdades não lhe saiam inteiras.

Cavalgou o circo, fez-se palhaço rico;
usou os louros do prestígio e da bravura
e estrebuchou ao primeiro fanico,
sem levar remorsos para a sepultura.

Morreu de velho, um ancião quebrado,
mendigando simpatia, compaixão e pranto.
Sorte a nossa, por ele já só ter passado,
que em vida foi um mártir, quase um santo.