* CRÓNICA IN POVO DA BEIRA 12/12/2018
No princípio era
sábado, nunca me hei-de esquecer, levantei-me cedo para tratar do couval que
tenho há algum tempo para me entreter nos fins-de-semana. Deus dormia num divã
ao meu lado, ressonava. Tinha acabado de criar a sua obra-prima, o universo,
embora de início tivesse querido fazer uma trotinete, por ser mais divertido.
Acontece que antes se deu à invenção das asas, distribuiu-as pelos anjos e a
trotinete pareceu-lhe uma obra menor e sem qualquer préstimo. Fez o universo,
como disse, que lhe deu trabalhos dobrados, por não ser o que esperava e por
ter de o encher de mundos e de perguntas que ele próprio não sabia responder.
Ia falar da
minha intenção de tratar do couval. Fica ali numa encruzilhada onde Deus queria
plantar umas macieiras do tipo red
delicious, salvo erro para tramar um casal nudista que lá vivia e cujo
despudor o incomodava. Ao que me apercebi, a tramoia passava por uma magia
metafórica, muito a seu gosto, que acabou por levar a cabo noutro local, por
insistência minha. Fiz-lhe ver que ele, como todo-poderoso, sempre podia
arranjar um terreno bem melhor, paradisíaco até e, se as coisas tinham chegado
àquele ponto, a culpa era sua, que os criou e colocou ali nus e ignorantes em
boa terra de cultivo. Além de tudo isto, não fazia sentido ser eu a plantar o
couval longe dali pelo trabalhão que isso me iria dar. Por uma vez foi razoável
e aceitou a minha ideia.
Naquela manhã de
sábado, as couves estavam uma lástima. Muitas delas já comidas até ao caule e
outras de folhas esburacadas por centenas de horríveis lagartas listadas e
peludas, que enchiam as respectivas panças até rebentar. Fiquei desolado.
Voltei para casa
de mãos a abanar e capaz das maiores blasfémias. Chegado ao quarto onde Deus
dormia ainda a sono solto, abri as janelas, como quem diz já são horas de
endireitar o esqueleto e gritei:
- Que bichos são
aqueles que puseste nas minhas couves?!
Deus virou-se,
esfregou os olhos, alisou a farta barba grisalha e, fixando-me como um míope à
procura de alguma coisa, resmungou:
- Que horas são?
- São horas de
te levantares e de me explicares porque encheste o meu couval com aquelas
miseráveis lagartas, que outro entretenimento não têm senão comerem as minhas
couves.
- Não fiz por
mal, são minhas filhas, filhas de Deus… Não queres que vá agora cometer
infanticídio…
- Tu nunca fazes
nada por mal, és um santinho, respondi-lhe irritado, ironizando com a sua
proclamada santidade.
- Não blasfemes,
tens de te habituar às adversidades, resmungou ao mesmo tempo que voltou a
virar-se para a parede.
Fiquei furioso
com aquela displicência divina perante o meu desespero e atirei-lhe:
- Ai é?! Então
trata de arranjar onde passar a noite de Natal, que sem couves, aqui em casa,
não há consoada para ninguém.