O autarca sonha as obras que imporá à comunidade governada. Esta frase soa bem. Não pelo sentido solidário do sonho que àquele sobrevém e muito menos por ser sonho, que apenas burila o que na realidade não passa duma astúcia, digamos, eleitoralista. Soa bem a frase, dizia, talvez porque, não tendo ainda nascido a obra, já a comunidade a tem por garantida no sonho do autarca e assim salvaguardada ao mais alto nível, venha o tempo em que todos os olhos a possam contemplar e os restantes sentidos dela desfrutarem. A verdade, porém, é que a obra (que, por enquanto ainda dorme no sonho do autarca) não será obra da comunidade; ela será, a avaliar pela inscrição gravada na pedra ou no bronze, no seu limiar ou peanha, a obra do autarca que a sonhou. Aí se dirá, não a nossa obra, mas a obra de. Assim como se for vantajosa todos exclamarão bendito seja quem a concebeu, como se for estorvo e de préstimo duvidoso facilmente será apelidada como obra do diabo, denunciando desta forma a falta de visão ou aselhice do autarca. Pelo que atrás fica dito, e lá não voltaremos para emendar seja o que for, já se suspeita que, quando a obra surgir haveremos de olhar para ela, louvando a oportunidade do autarca ou desdenhando da sua utilidade, assim o autarca nos tenha caído em graça ou não passe dum pedante figurão que mais não faz que um simples gato ao marcar o território que lhe garanta a preservação da estirpe. Além do mais, são as obras o que são: umas capazes de persistir porque o cimento e as vigas conseguem resistir à erosão por mais tempo e outras que, não existindo já fisicamente, continuam na memória de quem as comtemplou ou delas tomou conhecimento de fonte segura. Nunca saberemos nós o que vai na cabeça de outros ao observar uma obra, se o que lhes interessa é o proveito que da obra podem ter ou se, pelo contrário, sentir que os demais vêem o que se lhes mostra ao olhar, sendo eles a verdadeira obra. Restam uma placa, uma inscrição com o nome, as atribuições e as mordomias de um fulano de tal cujo sonho deixou inscrito em coisa qualquer para ser revisto. Abençoado seja o saber alentejano que, no melhor das suas singularíssimas interjeições, transforma esta que nasceu nome em irónica locução adverbial para enfatizar o que está sendo dito com vaidade e não menor alarde: É obra!