Logo que comecei a aproximar-me da quinta, o come-se-há - assim se chama o guarda canino do lugar – já me tinha farejado.
Agitava-se e gania de ansiedade e contentamento, se me é permitido interpretar desta forma a atitude do animal, depois de uma noite de vigilante trabalho, entregue a si mesmo e sem ladrar, que para isso foi ensinado.
Assim que me viu ao portão correu desenfreadamente ao meu encontro e, como não podia deixar de ser, fincou-me aquelas enormes mãos nos ombros, lambendo-me a cara e o que de mais lhe deu na gana, como faz a tudo e todos de quem gosta. Afinal de contas, é um animal de grande porte, suficientemente corpulento para intimidar quem não lhe adivinhe o carácter meigo e pacífico que na realidade possui.
Não tenho dúvidas em relação a este seu comportamento. Sei que me estima e respeita como macho alfa, mas se exagera nas festas de boas-vindas, desconfio logo de asneira grossa na minha ausência…
Olhei discretamente de relance, mas aparentemente estava tudo no seu lugar. Parecia até que o vento nocturno tinha varrido ordenadamente as folhas das árvores de fruto e arrumado as alfaias.
- Que fizeste tu desta vez, meu malandro?
Questionei sem esperança de resposta, mas antes para me convencer de que o primeiro olhar me tinha iludido, como quase sempre acontecia.
- Vamos lá, vamos lá – ordenei.
A euforia do come-se-há aumentava à medida que caminhávamos em direcção à sua casota.
- Come-se-há! – Gritei-lhe, em tom de repreensão. E não precisei de mais nada: deitou-se junto aos meus pés e começou a ganir baixinho como se pedisse desculpa por algo que eu não estava ainda preparado para entender.
Nesse instante, um som idêntico vindo da sua casota fez-me aproximar da entrada e eis a surpresa: um cachorro de raposa com dias de vida, aninhava-se a um canto, tremendo de frio.
- Onde foste tu roubar a raposinha, meu patife? Era claro que a rapinara à progenitora.
Descoberta a marosca e presumindo o meu assentimento, entrou na casota, lambeu a criatura e enroscou-se ternamente em volta daquele corpinho frágil e carente, de modo que a própria mãe não faria melhor.
- Bonito serviço, desabafei para ver se, entretanto, me ocorria alguma ideia com pés e cabeça.
Daqui em diante já não há matéria para ficção.
Por motivos desconhecidos, a raposa mãe, supondo-se não ter sido pacífica a adopção do filhote pelo come-se-há, não foi vista em algum momento nas redondezas e por isso a pequena raposa foi entregue a quem de ofício.
O mais difícil foi convencer o “pai”, coração de manteiga, a aceitar esta forma humana e burocrática de resolver o assunto. A dedicação de uma noite bastou para uma saudade infinita.
Por tudo isto terei sempre relutância em apelidar de animal a quem de humano não julgue inteiramente, coisa que hoje em dia me ocorre com frequência.