sexta-feira, 30 de novembro de 2012

AS VOLTAS DO MUNDO EM "A VOLTA AO MUNDO"

Pois aqui estou perante os meus amigos, confessando que, agora, acabei de ler a Volta ao Mundo de Ferreira de Castro, trinta e oito anos após a morte do autor, que datou a conclusão desta sua extraordinária obra em Agosto de 1944, edição da Editora Guimarães & Cª.
Trata-se de um dos mais ilustres escritores portugueses do século passado. Um observador atento da realidade envolvente, acutilante, capaz de nos fazer viver o que descreve e um humanista sincero como cidadão e como escritor.
Talvez não tivesse a mesma emoção se não vivêssemos nós, nos dias que correm, as vicissitudes nefastas do apertar da malha do capital financeiro internacional que, mercê do executivo fantoche que nos governa, nos obriga a inúmeras manifestações de massas de grandes proporções, à recente greve geral de ímpar amplitude e aos consequentes embates com as chamadas “forças da ordem”, sempre inocentadas nestes confrontos…
Abro por isso uma excepção em Corpo de Poema para transcrever um trecho da obra ímpar de Ferreira de Castro, aquando da sua passagem por Chicago e nos lembra e relata a origem do 1º de Maio.
Talvez pela actualidade que o tema, infelizmente, adquire nos dias que passam, aqui vos deixo sem mais comentários, o texto referido:


…”Ora, no dia 1º. De Maio de 1886, reunira-se aqui, em Chicago, um congresso de operários. As ideias anarquistas estavam, então muito em voga. Grande percentagem, senão a maioria do proletariado universal, tendiam para o anarquismo e anarquistas ou anarquizantes eram os intelectuais que pela causa do proletariado se interessavam. Os congressistas de Chicago militavam também na mesma doutrina e pretendiam apressar a conquista daquele horário (oito horas diárias) – um horário menos violento, menos desumano do que o existente até ali. A polícia de Chicago entrou, porém, no edifício e, como quase sempre a polícia intervém em reuniões de operários, ao sair deixava, atrás dela, numerosos feridos, numerosos mutilados, gritos de desespero e de dor.
Para protestar contra as violências de que haviam sido vítimas, os operários voltaram a reunir-se três dias depois, em comício ao ar livre, numa praça desta cidade. A polícia voltou, porém, a intervir – e fê-lo com a mesma ferocidade de três dias antes. Mas quando ela espadeirava à esquerda e à direita, abrindo cabeças aqui, decepando braços acolá, trespassando peitos mais além, no meio do tumulto imenso, no meio dos gritos e dos gemidos, uma bomba explodiu e dez polícias morreram.
Jamais se soube, ao certo, quem a bomba atirou; oitenta e tantos homens foram, porém, imediatamente mortos como represália e oito foram presos e julgados como responsáveis pelo lançamento do explosivo.
Para um juiz desse tempo, anarquismo e bombas eram sinónimos – era tudo a mesma coisa. Sabia-se, assim, de antemão que os presos seriam condenados à morte ou a trabalhos perpétuos.
Uma vaga de idealismo impelia, contudo, numerosos proletários de todos os países até ao supremo sacrifício. E passou-se, então, aqui, algo extraordinário, que havia de emocionar o Mundo inteiro
(…)
Os oito homens, que alinhavam entre os operários mais cultos de Chicago, apresentaram-se no tribunal não como acusados, mas como acusadores. De longas cabeleiras românticas, como era de bom uso nessa época, eles tomaram, do princípio ao fim do julgamento, atitudes de protagonistas de poema épico. Eles sabiam que, com este procedimento, agravavam a sua situação e atraiam mesmo a sentença de morte que pairava sobre as suas cabeças; todos eles, porém, embora inocentes, preferiam manter-se à altura do papel que as circunstâncias lhes haviam criado do que mostrar qualquer transigência perante o juiz.

Um deles, Alberto Spies, clama: “Podeis condenar-me à morte, mas eu quero que se saiba que no Illinois oito homens foram sentenciados a morrer apenas por acreditarem no futuro bem-estar da Humanidade e por não terem perdido a fé no triunfo final da Liberdade e da Justiça. Que crime cometemos nós? Nós temos apenas explicado ao povo as condições sociais em que ele vive; temos-lhe apenas feito ver os fenómenos sociais e as circunstâncias e leis sob as quais aqueles se desenvolvem; temos provado, graças à investigação cientifica, que o sistema do salário é a causa de todas as iniquidades sociais.
Além disto, temos proclamado que o dito sistema de salário, como forma específica do desenvolvimento social, teria de dar passagem, por necessidade lógica, a formas mais elevadas de civilização; e que este sistema preparava o caminho e favorecia a fundação dum método cooperativo universal, que tal é o socialismo. Que esta ou aquela teoria, este ou aquele enunciamento de melhoria futura não eram matéria de eleição e sim necessidade histórica…
(…)
O juiz interrompe-o. Mas o próprio acusador pede-lhe que autorize Spies a continuar. E este pronuncia, então, as palavras que haviam de o condenar definitivamente:
‘Como Buckle, como Paine, como Jefferson, como Emerson e Spencer e muitos outros grandes pensadores do nosso século, eu creio que o Estado de castas e classes, o Estado onde uma classe vive a expensas de outra – ao qual chamaremos Ordem – está próximo de desaparecer; eu creio que a esta bárbara forma de organização social, com os seus roubos e o seus assassínios legais, sucederá uma sociedade livre, uma associação voluntária, se assim o preferis. A verdade crucificada em Cristo, em Giordano Bruno, em João de Huss e em Galileu, vive ainda; estes e muitos outros nos precederam no passado. Nós estamos dispostos a segui-los. E um dia há-de chegar em que o nosso silêncio será mais poderoso do que as nossas vozes que hoje procurais sufocar com a morte.’
Todos os outros acusados fizeram declarações semelhantes. ‘Não é por um crime que me julgais; é pelos vossos princípios – diz Luis Lingg ao juiz. E acrescenta: ‘Podeis enforcar-me!’ Oscar Neebe, grita também: ‘ Deixai-me participar na sorte dos meus companheiros: enforcai-me com eles!’
O juiz contempla os réus. Um outro se levanta. Chama-se Adolfo Fischer. A atitude dos homens da Revolução Francesa parece exercer ainda alguma influência nestes outros homens. Fischer declara: ‘se hei-de ser enforcado pelos meus ideais, pelo meu amor à Liberdade, à Igualdade e à Fraternidade humanas, então não vejo nisso inconveniente algum. Matai-me!’
(…)
O julgamento durou vários dias e, no fim, o tribunal condenou cinco dos oito homens à morte e três a trabalhos forçados por muitos anos.
Estas sentenças levantaram uma profunda discordância universal, mesmo entre muitos daqueles que combatiam as reivindicações proletárias. E se havia sido impressionante a atitude dos acusados no tribunal, não foi menos comovente a das suas famílias, depois de serem condenados à forca. A mãe de Lingg escreve-lhe: ‘ Como sabes, eu também tenho lutado duramente para ganhar pão para ti, para a tua irmã e para mim mesma e é tão certo como neste momento me sentir com vida que, depois da tua morte, estarei tão orgulhosa de ti como estive quando vivias’. A mulher de Pearson proclama, também orgulhosamente: ‘Se depende de mim que o meu marido peça perdão, que o enforquem!’”

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O CASARIO


No casario quem mora,
canta, ri ou chora;
quem tem calor ou frio
e quem se foi embora,
já não mora no casario?

No casario quem come
ou se alimenta de fome
e tem a vida por um fio.
De quem e em que nome
se consome o casario?

No casario, por fora,
vivem a luz, por ora.
E dentro há vela ou pavio
que alumie quem lá mora
ou é negro, dentro, o casario?

Que sabemos nós de quem mora
se os olhos só vêem por fora?

domingo, 25 de novembro de 2012

FLORES DE MIM



Ai flores, cujo rescender
me colhe por mariposa,
dai-me tempo e a ver
quanto o meu voo não ousa.

Coberto de cores e flores
como anjo querubim,
mais as mágoas e dores
que brotam dentro de mim.

Voarei num golpe d’asa
sobre pétalas e poemas,
mesmo sem sair de casa
e em vez de asas ter penas.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

AMIGOS


Na foto (de 72/73), que me foi oferecida pelo meu amigo Joaquim Vicente, estão dois outros amigos: o Ambrósio Ferreira (à esquerda) e o Luis Silva.

Tenho amigos que ainda
e também amigos que já:
a uns posso dar boa-vinda;
outros já não estão cá.

O que sou, sou todos eles,
por isso sou bom e ruim:
destes um pouco, outro daqueles,
todos estão dentro de mim.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

NUBLADA VERDADE



É fácil falar do Sol, falar da Lua,
mesmo quando as nuvem prevalecem:
estão lá, a verdade é nua e crua;
dúvidas que hajam, logo desvanecem.

Difícil é saber o que se esconde
detrás duma palavra a descoberto,
o que encobre, o como e o onde,
o que quer dizer de errado ou certo.

domingo, 18 de novembro de 2012

PLÁTANO


O velho e robusto plátano cedeu enfim
a sua última folha rosada deste outono.
Cedeu a folha no triste adeus de abandono;
ficou a árvore, perjurando a morte; o fim.

Não cede a árvore pela mão da natureza
mais que as folhas consumidas, outonais:
cede ao tempo, a invernias e vendavais,
nessa luta mais não dá, mais não despreza.

Dos galhos secos, agora desfolhados,
despontarão flores e frutos renovados
e o seu esplendor será com então era:

Será de novo a sombra dos desabrigados,
exemplo de robustez e porte elogiados,
não agora: só quando voltar a primavera.

sábado, 17 de novembro de 2012

O FIM DAS DÚVIDAS



Não corre o rio de costas para o mar,
não corre. Não sopra o vento através do muro,
não sopra. Não voa o pássaro por voar,
não voa. Nada é feito sem futuro.


Não mata a fome o negro pão ganhado,
não mata. Não arde o coração do louco,
não arde. Não grita o dócil nem o acomodado,
não grita. Não grita, mas falta pouco, muito pouco!

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

COMO A AZEITONA


Eu, que tenho a vida repartida
entre a campina de Idanha
e o Alentejo, sei que, como os homens,
os frutos nascem sabendo já ao que vêm.
Os mesmos tratos e a mesma luta;
os mesmos donos da terra e os mesmos
que a adoçam, amanham e a tornam fértil.
Nos braços e nas frontes correm os mesmos rios
de crescidos leitos, onde o suor
pode correr livre, de jorro de um sol a outro.
Se há diferenças? Há: como os homens, a azeitona,
em Idanha é retalhada e pisada no Alentejo,
mas em ambos os casos com o mesmo fim…


terça-feira, 13 de novembro de 2012

DIA-A-DIA



Esta alternância de equinócios e solstícios
é ciência de grande enfado:
ora o dia, mal começado, já declina para a morte;
ora se torna em modorra, extenso,
com presunções de ser também o dia que há-de vir.
Decidi por isso comprazer-me
- somente no que ao dia diz respeito –
apenas com a parte da manhã. É bastante
e condiz com a minha origem rural e simples,
habituado desde criança ao sol por relógio
e à brisa matinal para tempero do corpo.
O que sobrar pode o dia utilizar como muito bem entender,
mas não conte comigo.
Tome o dia, o dia inteiro por sua conta,
até um dia…

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A CEIA



O mais atrevido picava furtivamente
a batata cozida que era já cuidada para a próxima refeição.
- Guardado está o bocado…
No panelão de ferro escuro afundavam todas as batatas,
mais ou menos à conta, com casca,
para que o entretém do desbulho
provocasse a sensação de uma refeição farta e prolongada.
- Ficavam assim mais saborosas, era a versão familiar.
O pai contava sempre a mesma história:
que a batata não era um fruto como a castanha,
mas um tubérculo, uma raiz,
que era recente na nossa dieta habitual
e que tinha sido trazida da américa.
Isso dava a todos a impressão de um manjar exótico,
apesar do nome saber ao mesmo
que o som da palavra que lhe dava o nome.
Comiam-se com ganas de tapar todos os buracos
que o sol ou a chuva abriam algures no ventre.
A tudo isto se chamava ceia
(nada parecida com o quadro com o mesmo nome
pendurado, desde que me lembro,
por cima do aparador da sala)
a tudo isto chamávamos ceia
porque não tínhamos outro nome para lhe chamar.
Poderíamos chamar-lhe fome,
se soubéssemos o que era fartura.

sábado, 10 de novembro de 2012

OS DISTRIBUIDORES DE GÁS


Por baixo da minha casa há um concessionário de gás.
Tenho observado com frequência, cá de cima, da varanda,
a minúcia com que os distribuidores
arrumam as botijas nas carroçarias de transporte:
umas vão deitadas – as maiores – e as mais vulgares de pé.
No fim, não sobra nem falta espaço. Tudo fica perfeito,
geométrico, acomodado.
Esta azáfama faz-me lembrar os meus poemas:
como os construo e invento espaços, verso a verso,
e os ajusto até que nada sobre ou falte a cada estrofe.
Por fim, debandam para aquecer lugares e sonhos,
como fazem os distribuidores das botijas.
Em ambos os casos, no regresso já nada é igual:
as botijas vêm surradas e vazias
e os poemas inchados como balões de gás.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

ALBERTO CAEIRO


Ontem encontrei Alberto Caeiro.
Tinha um ar comisero, pesado,
e os olhos ardiam-lhe como lume.
Lia Cesário Verde e as lágrimas
corriam-lhe como a uma criança.
Arrastava os versos do mesmo modo
como se carregam os últimos cestos
da vindima, onde Cesário
tossia do princípio ao fim.
Não reparou em mim e ainda bem:
não iria dizer-me nada que eu não soubesse já;
nem as suas lágrimas
seriam mais verdadeiras do que os meus versos.



quarta-feira, 7 de novembro de 2012

POESIA DOS SENTIDOS - O SEXTO SENTIDO




homem p
homem pre
homem preve
homem preveni
homem prevenido
siod rop elav

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

POÉTICA DOS SENTIDOS - O TACTO E O PALADAR

Pablo Picasso


É de púrpura e fogo
o teu olhar
quando me apertas com força
o suor do ventre
fresco
e saboroso
como goles de vinho branco

- enorme impressão digital
que denuncia
verso a verso
a nossa poesia

sábado, 3 de novembro de 2012

POESIA DOS SENTIDOS - O OLFACTO


Não havia cheiros como os da casa da minha avó.
Ah, se eu pudesse descreve-los,
reproduzi-los com palavras perfumadas!
Subia as escadas
com aromas carregados de maresias recentes,
misturados com o perfume do irrepreensível encerado,
e sabia, pela corrente de ar vinda da cozinha,
que uma grande fatia de pão caseiro,
com queijo de cabra, me estaria reservada para a merenda.
Cada recanto tinha o seu próprio odor,
por isso reconhecia de olhos fechados
a geografia de toda a casa
e do meloso aroma das mãos que me afagavam o rosto,
dos lábios que me beijavam,
do regaço que me acolhia como ninguém.



sexta-feira, 2 de novembro de 2012

POÉTICA DOS SENTIDOS - O OUVIDO


Envelhecemos como as pedras
e o primeiro sinal é não ouvir; ouvir mal.

Treinámos a vida inteira.
Fomos selectivos , usamos filtros.

Mas agora não. É o sentido
que definha e morre o bicho do ouvido.

Às pessoas pedimos que repitam
e o tom da música podemos subi-lo.

Mas o chilrear dos pássaros
e o assobio da brisa nos ramos da árvores
não há como tê-los decorado:
é tarde agora para os aprender
a quem nunca lhes dedicou uma só ária.



quinta-feira, 1 de novembro de 2012

POÉTICA DOS SENTIDOS - O OLHAR


Olhássemos nós o mundo
das varandas dos teus olhos
e então verias.